No meio do caos, da aparente, e mesmo aparante, confusão insolúvel, do descalabro das nossas condições de vida, das delapidações do patrimônio público, das detonações da esperança de outrem, das delações dos inimigos-opositores, das quase infundadas denúncias que se vive na cidade; assim, no meio dos incêndios das casas de palhas que ilustravam nossa paisagem urbana, devido às sabotagens e invejas dos nossos vizinhos parentes, mesmo exasperados, esperávamos, ansiosamente, pela mesma paz perturbadora.
Não era mais obstinação, nem teimosia, nem frustração, nem premonição, apenas uma paciência sem futuro. Ou um desejo prematuro que se pretendia satisfazer. Um capricho ou, quiçá, um fetiche do destino. Assim tecíamos, sorrateiramente, nossos destinos como se fossem ninhos cruzados num pequenino caminho da quase funesta crença no devir. Tecíamos, sobremaneira, nosso desejo e, simultaneamente, nossa vontade de avançar, sem recuos, para frente em direção a um horizonte temporal sem mesquinhez, mas com nobre altivez de sentimento que se casou, ainda há pouco na nossa memória, com o nosso pensamento. Trata-se, estou em crer, da necessária distopia? Indago eu nas intimidades das minhas entrâncias ínfimas.
Era um beco com a saída para o abismo.
Era uma população inteira que perdia a sua reminiscência ao não valorizar na sua memória histórica existencial a subjetividade coletiva que a definia e, quiçá, a define. Havia mulheres confinadas nos seus desejos castrados.
Havia muitos ensejos por realizar que estavam trancados por décadas de aceitação amorosa descontínua, de anos de profusão de descasos orgásticos. Enfim, de algumas formulações inovadoras dos valores da terra que se quer deixar em segundo plano, porque manda a tradição que assim seja feita e assim haverá de continuar.
Por que mudar? Elas (as mulheres), como se estivessem trancadas numa casa escura, ou num labirinto de caverna, teciam assim suas vidas na doce correnteza da efemeridade existencial da sua sobrevivência. A ordem parecia ser a de que os homens as arrastassem, virilmente; e, atrás de si, encontrassem um ponto de encontro como num cortejo de pisca-pisca dos Djamburerés (vagalumes) amarelos, vermelhos e brancos.
Mantinham-se elas, no máximo, protegidas por uma sacralidade profana.
Alda, cuja rica imaginação ia sempre mais longe que o engenho da sua cultura e dos seus, ou até mesmo além do milagre do permitido e do imaginável, pensou, com a sua invenção da recusa, desentranhar a sua terra das suas amarras morais.
O bairro de Blim-Blim estava transformado. As pessoas tinham percebido as mudanças vindas de Bandim. Outros tempos. Novos ares. A menina havia sofrido metamorfoses no bairro de Bissau. Tudo se transformou na pátria, nesta indigesta mátria que, de frátria, parece não lograr nada de singular.
Os fatos e as pessoas haviam mudado um povoado ativo, e seus homens altivos construíram novas lojas, novas boutiques e oficinas de artesanato, e uma rota de comércio permanente estava a emergir, mas havia uma economia industrial que prometia não avançar.
O devir que há-de vir no nunca. E na nuca do nunca, o caos solidário.
E os homens deitados carinhosamente na mampufa, esteira, da miséria.
A revolta das pessoas se baseava desta vez na insalubridade das vivendas, no elevado custo de vida da capital, na farsa dos serviços médicos do Hospital Central e na iniquidade das condições de trabalho dos professores e funcionários públicos que não eram pagos com dinheiro de verdade, e sim com vales que só serviam para comprar um saco de arroz e um litro de óleo. O resto, dubriava-se. Isto é, desenrascava-se. Cada um safava-se como podia. Tudo à maneira?!
Disto isto, poemizo, o presente momento do despautério a crise perpetrada pelo filho da mãe, imbecil, mentiroso contumaz e seu grupo de delinquentes:
Telepatia
Ruas de utopias
A encarar problemas sérios
Ruas de sangue
A zangar-se da coragem
De sempre perder
E o homem
Como se fosse uma máscara
Diante do espelho.
E a companhia silenciosa
Dum disfarce
Que mistura verdades
E mentiras
Cujos amores
Debruçam-se em jogos de mentiras
Fingidas
Em que sujeitos matam-se
De torturas
Nas casas vazias
Duma tarde sombria
Mais covarde que tu, Tita NTy,
Somente
A minha sombra-disfarce
Que encostou suas mãos
Âs minhas custas
E, assim, sem jeito, beijo a luz
Que doira a cidade
Empoeierada
De horas a fio
Em pensamentos vãos
A espera do kuntangu
Ou a espera do siti ku liti
Da (minha) mãe-avô
Cujo cheiro
Atravessa a minha narina
Como a ruspa da POP
da segunda esquadra
na alquimia
das minhas cé(d)ulas
de cidadão
ventos que se movem
em direção ao Cais
braços de outros transeuentes
que se erguem
entre cajueiros
e mangueiras
e acácias
e prédios coloniais
que trazem para mim,
partir de fora,
um pouco de sol
da rua
e as águas do Geba
cheiram a suco de veludo
e cabaceira
como se estivessem
ao leme
e eu a proa
como um barco
ao largo
em direção às ilha
no incendiar do sol
que exibe o riso
da menina do mar,
a sereia malgosada!
Não deito fora
As flores
Na ondulante maré
Do Cais,
Porque as palavras
Que balbuciarei
Serão apenas cadáveres
Só de palavras
Nem aos mortos de 59
Nem aos de 63
E nem aos de 98
Com os abraços
E afagos
Rumorosos da vida
Das munições civilizacionais
esgotadas do tuga
que chama
nossos grandes
de turras do engenheiro
nessa nova lava
de onda
de dinheiro
que subtraem
do erário
frustrando
o peso da tua alegria
causando-te pesares
de tantas madrugadas acordadas, Comandante!
Insónias?!
Só insónias,
Um gosto necrófilo
De lágrima furtiva
É o nosso
Instante
De sorrir
De ir
E de vir
Em entidades
Irans daqui
E deuses dacolá
Na lisura
Das significâncias
Que enxertamos em nós
Num ódio generoso,
Cordial, e, sempre, cínico~
Do vácuo
Do destino atroz
Qual o mistério
Da caverna
Cavernada na Baiana
Por causa das mortes
Rotineiras
Feitas
De seculars injustiças
Como se procedéssemos
Ao ritual diário
De negras formigas
Condenadas
Que sabem,
Conscientemente,
Que serão devoradas
Devoradas em tudo
E no todo…
A época
Lá se foi,
Mas a memória permanece viva
Na mesma mentalidade
Assoberbada,
Assombrando-nos,
Penosamente.
O resto
Pertence a Ampa
Julgar
Já que a História
não o faz
nesta gólgota pessoal
a que estamos mergulhados
nesta via sacra sexual
que nos assola, viciosamente, como calvário
duma servidão férrea
indeterminada pelos de fora
como se de Ndinguy nos chamássemos
ou kikia nos denominássemos
a fotografia
do nosso passado
se presentifica
futurologicamente
nas paredes
de nossas mentes
nuas
a estragar
o nosso ser:
tu, eu e ele ou ela!
Na concreta morte
Anunciada de sonhos
Dentro do silêncio
Roído
Na memória
Do tempo
E no corpo
Do espaço
Como uma teia
De nervuras
Do real
Do devir
Do respirar
Do silêncio nosso,
Sendo-nos, simultaneamente, pós
E plânctons pensantes
Sentiendis,
Operandis,
E faciendis,
Essendis, enfim…
A história
Dorme
Na estória
Acorda
Em passadas
E vive
Nas nobas
E kafumbans
Se dormirmos
Vamos parir
Mais monstros
De sinceras lágrimas
Por ominia aecula saeculorum…
Assim, eu rio
O rio
Sorrio
Para ele
No frio
De suas margens
Um sorriso
Sobre suas águas
Que, sem parar,
Desaguam em ti,
Tita NTy.
O mar
É o útero
Da terra
Com as suas parcas
Linhas
Humanas
Nossa Senhora
de San Bacil!
Protegei-nos!
Faça-nos
Dar
Saltos
Da morte
Para
Os ovários
Da vida,
Nós, teus filhos,
Njeñerus
E njeñadus!
Às algas do Geba,
Protegei,
Esta terra
NTy!
A revolta já não escandaliza ninguém. Pois o escândalo tornou-se rotineiro. E a pobreza, esta menos ainda causava algum marl-estar nalguém. Talvez fosse a pobreza (ou melhor, a miséria) que ainda harmoniza-nos a todos.
Pena que não tenha terminado como no massacre do Cais. Cais, tu no massacre?
É a abota, a vaquinha mensal, a irmanar o que o Estado bota.
Caro leitor d’O Democrata, até a próxima, que o cronista precisa dormir para tentar esquecer o desassossego pátrio.
Por: Jorge Otinta, ensaísta e crítico literário guineense