Crônica: CRUZ CREDOOOOOOO, FIGA KAÑOTA!

No meio do caos, da aparente, e mesmo aparante, confusão insolúvel, do descalabro das nossas condições de vida, das delapidações do patrimônio público, das detonações da esperança de outrem, das delações dos inimigos-opositores, das quase infundadas denúncias que se vive na cidade; assim, no meio dos incêndios das casas de palhas que ilustravam nossa paisagem urbana, devido às sabotagens e invejas dos nossos vizinhos parentes, mesmo exasperados, esperávamos, ansiosamente, pela mesma paz perturbadora.

Não era mais obstinação, nem teimosia, nem frustração, nem premonição, apenas uma paciência sem futuro. Ou um desejo prematuro que se pretendia satisfazer. Um capricho ou, quiçá, um fetiche do destino. Assim tecíamos, sorrateiramente, nossos destinos como se fossem ninhos cruzados num pequenino caminho da quase funesta crença no devir. Tecíamos, sobremaneira, nosso desejo e, simultaneamente, nossa vontade de avançar, sem recuos, para frente em direção a um horizonte temporal sem mesquinhez, mas com nobre altivez de sentimento que se casou, ainda há pouco na nossa memória, com o nosso pensamento. Trata-se, estou em crer, da necessária distopia? Indago eu nas intimidades das minhas entrâncias ínfimas.

Era um beco com a saída para o abismo.

Era uma população inteira que perdia a sua reminiscência ao não valorizar na sua memória histórica existencial a subjetividade coletiva que a definia e, quiçá, a define. Havia mulheres confinadas nos seus desejos castrados.

Havia muitos ensejos por realizar que estavam trancados por décadas de aceitação amorosa descontínua, de anos de profusão de descasos orgásticos. Enfim, de algumas formulações inovadoras dos valores da terra que se quer deixar em segundo plano, porque manda a tradição que assim seja feita e assim haverá de continuar.

Por que mudar? Elas (as mulheres), como se estivessem trancadas numa casa escura, ou num labirinto de caverna, teciam assim suas vidas na doce correnteza da efemeridade existencial da sua sobrevivência. A ordem parecia ser a de que os homens as arrastassem, virilmente; e, atrás de si, encontrassem um ponto de encontro como num cortejo de pisca-pisca dos Djamburerés (vagalumes) amarelos, vermelhos e brancos.

Mantinham-se elas, no máximo, protegidas por uma sacralidade profana.

Alda, cuja rica imaginação ia sempre mais longe que o engenho da sua cultura e dos seus, ou até mesmo além do milagre do permitido e do imaginável, pensou, com a sua invenção da recusa, desentranhar a sua terra das suas amarras morais.

O bairro de Blim-Blim estava transformado. As pessoas tinham percebido as mudanças vindas de Bandim. Outros tempos. Novos ares. A menina havia sofrido metamorfoses no bairro de Bissau. Tudo se transformou na pátria, nesta indigesta mátria que, de frátria, parece não lograr nada de singular.

Os fatos e as pessoas haviam mudado um povoado ativo, e seus homens altivos construíram novas lojas, novas boutiques e oficinas de artesanato, e uma rota de comércio permanente estava a emergir, mas havia uma economia industrial que prometia não avançar.

O devir que há-de vir no nunca. E na nuca do nunca, o caos solidário.

E os homens deitados carinhosamente na mampufa, esteira, da miséria.

A revolta das pessoas se baseava desta vez na insalubridade das vivendas, no elevado custo de vida da capital, na farsa dos serviços médicos do Hospital Central e na iniquidade das condições de trabalho dos professores e funcionários públicos que não eram pagos com dinheiro de verdade, e sim com vales que só serviam para comprar um saco de arroz e um litro de óleo. O resto, dubriava-se. Isto é, desenrascava-se. Cada um safava-se como podia. Tudo à maneira?!

Disto isto, poemizo, o presente momento do despautério a crise perpetrada pelo filho da mãe, imbecil, mentiroso contumaz e seu grupo de delinquentes:

Telepatia

Ruas de utopias

A encarar problemas sérios

Ruas de sangue

A zangar-se da coragem

De sempre perder

E o homem

Como se fosse uma máscara

Diante do espelho.

 

E a companhia silenciosa

Dum disfarce

Que mistura verdades

E mentiras

Cujos amores

Debruçam-se em jogos de mentiras

Fingidas

Em que sujeitos matam-se

De torturas

Nas casas vazias

Duma tarde sombria

 

Mais covarde que tu, Tita NTy,

Somente

A minha sombra-disfarce

Que encostou suas mãos

Âs minhas custas

E, assim, sem jeito, beijo a luz

Que doira a cidade

Empoeierada

De horas a fio

Em pensamentos vãos

A espera do kuntangu

Ou a espera do siti ku liti

Da (minha) mãe-avô

Cujo cheiro

Atravessa a minha narina

Como a ruspa da POP

da segunda esquadra

 

na alquimia

das minhas cé(d)ulas

de cidadão

ventos que se movem

em direção ao Cais

braços de outros transeuentes

que se erguem

entre cajueiros

e mangueiras

e acácias

e prédios coloniais

que trazem para mim,

partir de fora,

um pouco de sol

da rua

e as águas do Geba

cheiram a suco de veludo

e cabaceira

como se estivessem

ao leme

e eu a proa

como um barco

ao largo

em direção às ilha

no incendiar do sol

que exibe o riso

da menina do mar,

a sereia malgosada!

 

Não deito fora

As flores

Na ondulante maré

Do Cais,

Porque as palavras

Que balbuciarei

Serão apenas cadáveres

Só de palavras

Nem aos mortos de 59

Nem aos de 63

E nem aos de 98

Com os abraços

E afagos

Rumorosos da vida

Das munições civilizacionais

esgotadas do tuga

que chama

nossos grandes

de turras do engenheiro

nessa nova lava

de onda

de dinheiro

que subtraem

do erário

frustrando

o peso da tua alegria

causando-te pesares

de tantas madrugadas acordadas, Comandante!

 

Insónias?!

Só insónias,

Um gosto necrófilo

De lágrima furtiva

É o nosso

Instante

De sorrir

De ir

E de vir

Em entidades

Irans daqui

E deuses dacolá

Na lisura

Das significâncias

Que enxertamos em nós

Num ódio generoso,

Cordial, e, sempre, cínico~

Do vácuo

Do destino atroz

Qual o mistério

Da caverna

Cavernada na Baiana

Por causa das mortes

Rotineiras

Feitas

De seculars injustiças

Como se procedéssemos

Ao ritual diário

De negras formigas

Condenadas

Que sabem,

Conscientemente,

Que serão devoradas

Devoradas em tudo

E no todo…

 

A época

Lá se foi,

Mas a memória permanece viva

Na mesma mentalidade

Assoberbada,

Assombrando-nos,

Penosamente.

 

O resto

Pertence a Ampa

Julgar

Já que a História

não o faz

nesta gólgota pessoal

a que estamos mergulhados

nesta via sacra sexual

que nos assola, viciosamente, como  calvário

duma servidão férrea

indeterminada pelos de fora

como se de Ndinguy nos chamássemos

ou kikia nos denominássemos

a fotografia

do nosso passado

se presentifica

futurologicamente

nas paredes

de nossas mentes

nuas

a estragar

o nosso ser:

tu, eu e ele ou ela!

 

Na concreta morte

Anunciada de sonhos

Dentro do silêncio

Roído

Na memória

Do tempo

E no corpo

Do espaço

Como uma teia

De nervuras

Do real

Do devir

Do respirar

Do silêncio nosso,

Sendo-nos, simultaneamente, pós

E plânctons pensantes

Sentiendis,

Operandis,

E faciendis,

Essendis, enfim…

 

A história

Dorme

Na estória

Acorda

Em passadas

E vive

Nas nobas

E kafumbans

Se dormirmos

Vamos parir

Mais monstros

De sinceras lágrimas

Por ominia aecula saeculorum…

 

Assim, eu rio

O rio

Sorrio

Para ele

No frio

De suas margens

Um sorriso

Sobre suas águas

Que, sem  parar,

Desaguam em ti,

Tita NTy.

 

O mar

É o útero

Da terra

Com as suas parcas

Linhas

Humanas

Nossa Senhora

de San Bacil!

 

Protegei-nos!

Faça-nos

Dar

Saltos

Da  morte

Para

Os ovários

Da vida,

Nós, teus filhos,

Njeñerus

E njeñadus!

Às algas do Geba,

Protegei,

Esta terra

NTy!

A revolta já não escandaliza ninguém. Pois o escândalo tornou-se rotineiro. E a pobreza, esta menos ainda causava algum marl-estar nalguém. Talvez fosse a pobreza (ou melhor, a miséria) que ainda harmoniza-nos a todos.

Pena que não tenha terminado como no massacre do Cais. Cais, tu no massacre?

É a abota, a vaquinha mensal, a irmanar o que o Estado bota.

Caro leitor d’O Democrata, até a próxima, que o cronista precisa dormir para tentar esquecer o desassossego pátrio.

 

 

Por: Jorge Otinta, ensaísta e crítico literário guineense

 

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