[ENTREVISTA] O Governo da República Árabe Saaraui Democrática manifestou a vontade de abrir uma Embaixada na Guiné-Bissau, no âmbito da relação histórica existente entre o povo guineense e o povo saaraui democrático. O desejo de estabelecer uma representação diplomática em Bissau foi tornado público por Mohamed Beisad, membro da direcção da Frente Polisário, um partido que luta pela independência total do território de Saara Ocidental ocupado pelo reino de Marrocos.
Mohamed Beisad que falava numa entrevista exclusiva ao jornal “O Democrata” quando esteve no país a convite do partido libertador (PAIGC) para participar na cerimónia de abertura solene do seu IX Congresso Ordinário, onde proferiu uma mensagem aos delegados ao congresso no quadro da relação histórica existente entre os dois partidos desde o período da luta de libertação da Guiné-Bissau, conduzida pelo PAIGC.
A República Saaraui é um Estado parcialmente reconhecido internacionalmente. É uma antiga colônia espanhola (Saara Espanhol), ocupada em 1975 pelo Reino de Marrocos, após a celebração dos Acordos tripartidos de Madrid, firmados entre os representantes da Espanha, Marrocos e da Mauritânia.
O território encontra-se atualmente sob disputa entre a autoproclamada República Saaraui Democrática e o governo central do Marrocos. A República Árabe Saaraui Democrática (RASD) foi proclamada pela Frente Polisário a 27 de fevereiro de 1976, em Bir Lehlou, no Saara Ocidental, e controla cerca de 20 a 25 por cento do território que reclama como seu. A RASD define os territórios sob seu controle como territórios libertados ou Zona Livre. O reino de Marrocos controla e administra o resto do território e chama estas terras de Província do sul, enquanto o governo de saaraui considera esses territórios como regiões ocupadas.
E a República Árabe Saaraui Democrática é reconhecida por mais de 80 Estados e é membro de pleno direito da União Africana, mas não é reconhecida pelas Nações Unidas que a consta na lista dos territórios ainda não descolonizados.
BEISAD: ‘GANHAMOS A GUERRA DIPLOMÁTICA A NÍVEL DE ÁFRICA E VAMOS CONTINUAR A LUTA’
Beisad disse na entrevista que o seu partido, que conduz a luta pela libertação total do território de Saara Ocidental, conseguiu ganhar a guerra diplomática ao reino de Marrocos em África, porque conseguiu fazer com que a União Africana lhe reconhecesse como o único representante legítimo do povo saaraui, pelo que gozam do direito de membro de pleno direito da União Africa, onde têm os mesmos direitos como todos os países, inclusive o reino de Marrocos, que acabou de aderir a organização de novo, após a sua retirada em 1984.
Explicou que o governo Saaraui goza de uma relação histórica e política com a Guiné-Bissau, tendo lembrado que as autoridades guineenses ajudaram muito no passado os combatentes saarauis desde apoio material e político na luta pela libertação dos territórios ocupados pelo reino de Marrocos. E diz que o povo saaraui sempre é grato pela contribuição histórica do povo da Guiné-Bissau.
Não obstante a crispação que se regista nos últimos tempos na relação entre o governo guineense e o governo Saaraui, assegurou que o executivo que controla uma parte do território de Saara Ocidental continua a lutar para defender as relações com todos os países africanos, sobretudo as relações estabelecidas com os países que um dia disponibilizaram apoio material e político para a luta do povo Saaraui.
“Temos uma coisa que nos une com vários países que apoiam a nossa causa desde as primeiras horas, por exemplo, a cultura ibérica. A partilha de uma organização sub-regional une-nos, porque é o lugar onde defendemos os interesses dos nossos Estados e dos nossos povos. E neste caso, estamos unidos em nome da União Africana. Em relação à Guiné-Bissau, partilhamos uma história comum, isto é a luta pela independência ou pela libertação dos nossos povos da ocupação da força inimiga. É por isso que o governo guineense apoia-nos, porque chegou a sentir a amargura, a dor e brutalidade da força invasora que não tem piedade de ninguém. É por isso que os países que enfrentaram a colonização apoiam-nos para libertarmo-nos da ocupação marroquina”, defende.
Interrogado se o seu governo pretende abrir uma embaixada em Bissau a semelhança daquilo que fez em outros países, respondeu que no passado havia uma embaixada na Guiné-Bissau, mas devido a algumas situações que não especificou acabaram por fechá-la.
No entanto, demostrou a vontade do seu governo em abrir uma Embaixada em Bissau, de forma a impulsionar e dar mais dinâmica na relação entre os dois governos, como também dar mais dinâmica a sua política externa.
Assegurou que ainda não fizeram nenhum contacto com autoridades guineenses no que concerne a reabertura da Embaixada, mas acredita que no futuro próximo entabularão contactos por vias diplomáticas com o intuito de reabrir a Embaixada no solo pátrio de Amílcar Cabral.
Lembrou neste particular que a Guiné-Bissau abrira uma Embaixada no seu país, mas houve algumas questões políticas tanto da parte das autoridades guineenses como a nível do seu próprio país que acabaram por influenciar o fecho da Embaixada da Guiné-Bissau.
Solicitado a pronunciar-se sobre a divergência de posição a nível do Estado guineense sobre a situação de Saaraui, onde o governo manifesta o apoio a Frente Polisário e o Chefe de Estado posiciona-se ao lado do reino de Marrocos, respondeu que a Guiné-Bissau é um país soberano com os poderes de definir a sua política externa, por isso não quer imiscuir-se nos assuntos internos do país e que, em sua opinião, cabe às autoridades guineenses posicionarem-se firmemente neste sentido e não permitir interferências exteriores na sua política externa.
Mohamed Beisad disse que ninguém pode eliminar a relação histórica cultivada entre a Frente Polisário em nome do povo Saaraui e a Guiné-Bissau. Contudo, reconhece que pode haver a crispações, e fricções de um momento para outro por razões que não especificou, mas diz estar seguro que jamais ninguém pode minar ou estragar a relação semeada com o PAIGC e com o povo guineense em especial, porque é parte da história.
“MARROCOS NÃO QUER DEIXAR SAARA OCIDENTAL, POR ISSO SABOTA TODOS ACORDOS DE PAZ”
Sobre as negociações para a assinatura de acordo de paz com o reino de Marrocos, explicou que assinaram três acordos para a implementação da paz com o reino de Marrocos através de iniciativas encetadas pelas organizações regionais e internacionais.
O primeiro acordo foi denominado “Plano Africano”, conduzido por uma ‘Comissão Ad hoc’ composto por cinco Chefes de Estado, nomeadamente: Julius Nyerere, Presidente da Tanzânia; Olusegun Obasanjo, Presidente de Nigéria; El Hadj Omar Bongo Ondimba, Presidente do Gabão; Daniel Toroitich Arap Moi, Presidente de Quênia e o Abdou Diouf do Senegal.
“Esta comissão era composta por Chefes de Estados indicados por nós e outros da parte do reino de Marrocos, ou seja, Presidentes amigos do povo Saaraui e amigos deles. O Marrocos sabotou este plano de paz da Organização da Unidade Africana. Lembro que assinamos um acordo de paz em 1991 com o Marrocos, que incluiu um cessar-fogo, com o intuito de permitir ao povo saaraui exercer o seu direito de voto num referendo livre, através do qual o povo demostraria o seu desejo de independência e tornar-se num Estado livre e soberano, mas o reino de Marrocos sabotou o referendo. Infelizmente não houve uma reação forte a nível internacional contra o governo marroquino”, lamentou.
Contou ainda que o terceiro acordo denominado “Acordo de Houston” foi assinado entre os Primeiros-ministros de Saaraui e de Marrocos, sob auspícios do ministro James Barker, enviado especial das Nações Unidos. No entanto, acusou o reino de Marrocos de recusar a implementação do referido acordo, ou seja, de nada fazer de concreto para a sua aplicação.
“O Governo marroquino tem uma noção de luxo ao contrário da própria realidade. Eles pensavam que, com o passar do tempo, íamos desistir por causa das suas campanhas de desinformação. Vinte anos depois estamos aqui a resistir e ainda muito mais fortes, com os pés bem assentes no chão. Conseguimos ganhar a batalha diplomática a nível do nosso continente. Agora estamos mais fortes diplomaticamente e cada dia ganhamos terreno em termos diplomaticos, dado que estamos a abrir as nossas representações diplomáticas um pouco por todo o mundo fora. Sentamos em pé da igualdade para discutir assuntos importantes com o reino de Marrocos nas reuniões da União Africana, como Estados independentes e soberanos”, observou o diplomata saaraui.
O representante da Frente Polisário disse que a situação conjuntural no mundo hoje obriga a mudanças inesperadas, mas sobretudo as revoluções registadas nos últimos anos a nível dos países árabes e a crise económica mundial são factores que também contribuíram para o desgaste de Marrocos, que agora depara-se igualmente com alguns problemas sociais no seu quintal.
BEISAD: “ADERÊNCIA DE MARROCOS A CEDEAO É TARDE, NÃO PODE INFLUENCIAR PAÍSES CONTRA NÓS”
Indagado se a iniciativa de Marrocos de aderir a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental não complicará a relação existente entre os países membros desta organização sub-regional e o governo de Saaraui, respondeu que a tentativa do governo marroquino de se rastejar para aderir à CEDEAO confirma a frustração do Reino de Marrocos que depara com grandes dificuldades económicas e problemas sociais no momento.
“A crise social e económica levou-lhes a regressar a União Africana, assumindo assim a derrota em termos diplomaticos frente ao povo saaraui. E a mesma razão os obrigou a solicitar a entrada na CEDEAO. A aderência de Marrocos a CEDEAO é tarde, e não nos preocupa porque não pode influenciar os países contra nós! Conseguimos estabelecer uma relação histórica e de respeito mútuo com os países membros desta organização”, precisou.
Asseverou que a CEDEAO existe desde 1975, por isso questionou a razão da demora do governo marroquino de manifestar o interesse de integrar aquela organização sub-regional e, só agora é que “acordou de sono profundo” para solicitar a entrada na CEDEAO.
O embaixador frisou que o reino tem uma ilusão ou sonho de expansão a nível da Africa, mas depara-se com dificuldades financeiras e políticas para prosseguir com o seu sonho expansionista.
Revelou, no entanto, que o reino de Marrocos apenas joga o papel de representante dos interesses da França e das suas empresas multinacionais, desde bancos a companhias de telecomunicações. Sustentou que o governo marroquino não tem nada a dar à Africa e aos africanos.
“A aderência de Marrocos à CEDEAO representa uma ameaça para a CEDEAO e para os povos dos países desta organização, porque o Marrocos tem muitos terroristas que aderem a luta na Síria e no Iraque. Nós acreditamos e muito na firmeza dos dirigentes políticos dos países da CEDEAO que saberão tomar em conta a relação histórica que cultivamos até aqui”, referiu.
BEISAD ACUSA FRANÇA DE INSTRUMENTALIZAR O REINO DE MARROCOS EM OCUPAR SAARA
Questionado sobre como interpreta a posição das Nações Unidas que aceitou a autodeterminação do povo saaraui, mas não reconhece Saara como um Estado independente e soberano, recordou que as Nações Unidas em cada ano faz uma resolução sobre a situação Saaraui através da sua Comissão de descolonização, onde apela o respeito à vida do povo saaraui.
“As Nações Unidas têm uma missão no Saara desde 1991, com mandato de trabalhar no processo do referendo e que se desloca para diferentes zonas do país. Nós reconhecemos os esforços feitos pelas Nações Unidas no sentido de ajudar a independência do nosso povo, mas infelizmente a França tem instrumentalizado o governo marroquino para ocupar o nosso território, de forma ajudar a própria França e aproveitar-se do povo africano através das suas empresas e continuar a sua dominação no continente”, lamentou.
Por último, diz estar contente por ter participado no IX Congresso Ordinário do partido fundado por Amílcar Cabral (PAIGC), onde lhe foi dada a oportunidade de proferir uma mensagem aos congressistas. No entanto, afirmou que o seu partido trabalhará arduamente para manter uma relação de convivência sã com o PAIGC e todos os outros partidos da África lusófona.
“A Guiné-Bissau fez uma luta histórica pela sua independência na base da orientação deste grande partido amigo do povo saaraui. Nós e incluindo vários outros povos de diferentes países no mundo inspirámo-nos na luta heróica do povo guineense pela sua liberdade do jugo colonial. Nós somos eternamente gratos para com o povo guineense, mas sobretudo com o PAIGC. Mas também temos muito respeito e consideração para com todos os autores políticos guineenses”, realçou o diplomata saaraui.
Por: Assana Sambú
Foto: A.S