
A crise financeira internacional, originada em meados de 2007 no mercado norte-americano de hipotecas de alto risco “subprime” adquiriu proporções enormes que acabou por se transformar, após a falência do banco de investimentos “Lehman Brothers” numa crise sistêmica.
O desenrolar da crise colocou em xeque a arquitetura financeira internacional, na medida em que explicitou as limitações dos princípios básicos do sistema de regulação e supervisão bancária e financeira, atualmente, em vigor, bem como pôs em questão a sobrevivência de um perfil específico de instituições financeiras.
É importante delinear alguns dos principais factores que transformaram uma crise de crédito clássica numa crise financeira e bancária de imensas proporções.
Numa crise de crédito clássica, o somatório dos prejuízos potenciais (correspondente aos empréstimos concedidos com baixo nível de garantias) e sua distribuição já seriam conhecidos, enquanto que na actual configuração dos sistemas financeiros, os derivativos de crédito e os produtos estruturados lastreados em crédito imobiliário replicaram e multiplicaram tais prejuízos por um factor desconhecido e redistribuíram, globalmente, os riscos deles decorrentes para uma grande variedade de instituições financeiras.
As incertezas sobre a efectiva situação dos balanços dessas instituições levaram à um congelamento dos mercados interbancários, expresso em “spreads” extremamente elevados.
Como as maciças injecções de liquidez das autoridades monetárias, que foram flexibilizando suas exigências e passaram a aceitar, praticamente, todo e qualquer colateral como garantia, não foram capazes de reverter o processo de “empoçamento da liquidez” em escala mundial, os países da União Europeia, dos Estados Unidos e de outros países desenvolvidos, seguiram o exemplo do Reino Unido e anunciaram, nas duas últimas semanas, garantias a esses créditos.
O primeiro factor decorre do princípio básico da auto-regulação pelo mercado que tem norteado, nas últimas décadas, o conjunto das medidas de supervisão e regulação. Esse princípio pode ser expresso da seguinte forma: a governança corporativa e a gestão de riscos dos bancos evoluíram a tal ponto que suas decisões podem ser consideradas as mais próprias e eficientes para evitar a ocorrência de episódios que possam desembocar em risco sistêmico.
Foi o risco sistêmico que orientou, em grande medida, as mudanças dos “Acordos de Basiléia” que incorporaram, na sua segunda versão (Basiléia II), as notas das agências de “ratings” e os modelos internos de precificação de ativos de gestão de riscos como critérios alternativos para a classificação dos riscos de crédito e incentivos à utilização de mecanismos de mitigação desses riscos, dentre os quais os derivativos de crédito.
O segundo fator está associado à forte interação entre bancos universais e às demais instituições, resultante da arquitetura financeira que está sendo posta em xeque.
Os bancos, que desde os anos 1980 buscavam diversas maneiras de retirar os riscos de crédito de seus balanços e torná-los mais líquidos, passaram a utilizar, de forma mais intensa, inovações financeiras com o objectivo de alavancar suas operações sem ter de reservar os coeficientes de capital requeridos pelos acordos de Basiléia.
Mas, a estratégia só foi viável, porque outros agentes se dispuseram a assumir contraparte dessas operações, ou seja, assumir esses riscos contra um retorno que, à época, parecia elevado.
Esses agentes foram as instituições financeiras que formam o chamado “shadow banking system” que inclui um conjunto de instituições envolvidas em empréstimos alavancados que não tinham, até a eclosão da crise de 2008, acesso aos seguros de depósitos e às operações de redesconto dos bancos centrais.
Nesse leque enquadram-se os grandes bancos de investimentos independentes, os “hedge funds”, os fundos de pensão e as seguradoras.
Nos EUA, ainda se somam os bancos regionais especializados em crédito hipotecário e as agências patrocinadas pelo governo. Esta definição contém um elemento implícito que é importante sublinhar: as instituições financeiras do “shadow banking system” não estão sujeitas às normas dos Acordos de Basiléia, as quais no caso norte-americano só se aplicam aos grandes bancos universais com operações internacionais.
A emergência deste sistema bancário “sombra” está associada a dois movimentos simultâneos e complementares: em primeiro lugar, como mencionado acima, os bancos submetidos aos requisitos de capital do (Acordo de Basiléia I) passaram a utilizar crescentemente um conjunto de instrumentos para retirar os riscos de seu balanço e viabilizar o aumento da sua alavancagem, processo que ficou conhecido como arbitragem regulatória; em segundo lugar, uma grande variedade de instituições evoluiu no sentido de desempenhar um papel semelhante ao dos bancos tradicionais sem estarem incluídas nessa estrutura.
Ora, a crise financeira de 2007/2008 que “a priori” parecia afetar apenas o sector imobiliário norte-americano, entretanto, ganhou repercussões no sistema financeiro internacional – provocando o risco sistêmico.
Esse risco sistêmico demonstra, em grande medida, que em finanças os “choques externos” são geneticamente transversais, ou seja, podem até ter origens ao nível interno das próprias instituições financeiras, mas apresentam reflexos genéricos e com consequências imprevisíveis ao sistema financeiro como um todo.
Enfim, podemos concluir, em termos de “lições da crise financeira internacional de 2008”, quer às decisões económico-financeiras do governo, quer pelo sistema financeiro, não podem e nem devem ser tomadas de forma isolada, sem levar em consideração às próprias dinâmicas subjacentes ao mercado interno e internacional e, no entanto, no caso específico da Guiné-Bissau, as regras do jogo são, também, idênticas.
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Por: Santos Fernandes
Bissau, 8 de Maio de 2018.
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Fonte: Revista de Economia Política, vol. 29, nº 1 (113) , pp. 133-149, janeiro-março/2009. A crise financeira de 2008 …