Crônica: NOS TEMPOS DO ESQUADRÃO

Dia de voto. Estávamos em 1985. Candidato? Só havia um.

Velhos tempos da sacana façanha no país de sempre, e nas mesmas coisas inacreditáveis de sempre. Era votar sim, com o cartão verde, e não, com o amarelo. Mas ai de quem fosse encontrado com o verde nas mãos! Sabia, na certa, que o martelo vinha-lhe falar mantenha na cabeça.

As sessões eleitorais estavam abertas às oito da manhã e se encerrariam às cinco da tarde. Mesas e gentes postos nas várias Assembleias de voto para escolher um candidato, melhor dizendo, para confirmá-lo nestas eleições sui generis.

– Então, rapaz, vai votar ou não vai votar?

Foi a pergunta que o presidente da mesa fez ao Watna Na Py. Mas, o Watna não respondeu.

Sentiu, no fundo de sua alma, que se voltasse para casa com o cartão verde na mão e alguém de sua tabanca o denunciasse lá em Buba, estava certo, que iria preso no Comando da Polícia. Percebeu isso nos gestos do presidente da mesa, no ar bruto e decidido e sabia que se um segurança de Estado o pegasse com aquele cartão, nada podia lhe salvar.

Diz-me, você não sabe em quem vai votar?- Voltou a indagar-lhe o presidente da Mesa.

– Sei.

– E está esperando alguém, por acaso? Despacha-te que temos muito que fazer. Além do mais já são horas. Ou tu pensas que não temos nada a fazer?

– Sei, camarada! Mas preciso pensar um pouco.

– Pensar? Agora? Aqui? Tinha que fazê-lo em casa; não aqui – bradou-lhe o ilustre presidente da Mesa de Assembleia de Voto. Aqui você só tem é que votar. E já sabe, se errar o voto…

Neste momento, por causa destas últimas palavras do presidente da Mesa, Watna sentiu um frio a atravessar-lhe o coração, comprimindo-lhe os pulmões. Bem que o presidente ou algum integrante da Mesa podia ser um destes seguranças secreto de Estado.

– Eles estavam ali atentos a quaisquer anomalias suas para denunciá-lo às autoridades – pensou de si para si.

Mas, como estava firme no seu propósito de não votar no candidato que concorre sozinho; afinal, eleição significa escolha, e não se pode fazer uma escolha sem opções.

Votou e foi para a sua casa. Levou consigo o cartão verde. Só que não deu conta de que no momento em que votava alguém o viu colocar dentro da urna o cartão amarelo e denunciou-o à Mesa. Saiu sem que ninguém o importunasse por isso.

Noite de lua nova. Os meninos da tabanca do Watna Na Py brincavam alegres, cheios de entusiasmo. De repente, alguém grita, meninos é hora de dormir. Todos para dentro! Já! Alguns tentaram reclamar, mas não obtiveram sucesso. Entraram, tristes, para os seus quartos, sem sono e com raiva dos adultos ainda por cima. Lá se foram as crianças dormir mesmo assim.

Os velhos convocaram uma reunião com todos os demais velhos da comunidade para os informar da recente prisão ora decretada contra o cidadão Na Py. Sem delongas, o rapaz foi preso e levado para o comando da POP.

Esbofeteando-o, o policial perguntou-lhe a razão de não votar no Chefe. Mas ele manteve-se calado, sem pio, mesmo que lhe matassem, não lhes diria seus motivos, suas mais recônditas razões. Então, o comandante ordenou aos policiais que lhe amarrassem os pés e as mãos e o colocassem a cabeça para baixo por uns cinco minutos.

Nada respondeu.

Desceram-no e o ataram à cadeira, uma espécie de cadeira feita só de concreto armado. E nada.

Então decidiu o comandante se não falasse a bem falaria a mal.

Para cumprirem a sua missão civilizadora, os policiais começaram a dar-lhe porrada de todos os tipos, socos, cuspos, maldizeres sobre a sua mãe e seu pai ex-combatente da liberdade da pátria, outrora grande herói, hoje a receber um escárnio salário por parte destes policiais que nem mesmo ao mato foram. Pisavam-lhe nos dedos dos pés, agora inchados e ensanguentados, bem como no seu corpo, com aquelas botas rudes dos soviéticos – que parecem só terem ensinado a esta gente a torturar e a matar.

De tanto o baterem, o sujeito começou a defecar sem se dar conta, fazer xixi nos panos que trazia em volta do seu corpo. Nisso foi jogado na cela, as lágrimas escorreram-no pela cara e, dele, apenas se ouvia soluços e gemidos.

Com o corpo abatido, quase desfalecido, foi vencido pelo silêncio da madrugada que agora chegava ao presídio.

Amanheceu.

Os outros presos conseguiram se erguer do leito para mais uma jornada de trabalho forçado. Eles, como tantos outros presos que adentraram por aquela porta do presídio eram sempre tratados com indiferença pela população. Que, no fundo, já sabia das histórias destes infelizes, pequenos larápios e aldrabões, desordeiros e inconsequentes e/ou delinquentes, unidos pelo mesmo destino: o da porrada, o das injúrias e o das calúnias.

Só um, nesta manhã, não saiu, justamente, o último visitante daquela nave humana da tortura, do sofrimento. Mas, principalmente, da falta da liberdade do pensar, do sentir e o de se expressar.

Já fora, os presos que aguardavam conhecer o novo companheiro da desgraça, viram um corpo embrulhado numa manta enorme e ser conduzido para a sua tabanca.

O sangue foi escorrendo e a cara do defunto esbranquiçada, pálida.

Assim se foi o rapaz. Ou como se diz ironicamente, ele havia assinado o divórcio com a vida. Em seguida, transformar-se-ia na poeira que o vento faria levantar, até ao farfalhar edénico das palmeiras.

Entretanto, o nosso país continua democrático. Ou mocacrático – perdoem-me o neologismo, pois faz parte do meu ofício de escritor – da democracia?

Caro leitor d’O Democrata, até a próxima, que estou de saída.

 

 

 

 

Por: Jorge Otinta,

Poeta, ensaísta e crítico literário guineense

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1 thought on “Crônica: NOS TEMPOS DO ESQUADRÃO

  1. Bela narrativa e ao mesmo tempo muito triste. Mas pura verdade da nossa história. Como Guineense, conto muito consigo na mudança deste país meu irmão Jorge Otinta.

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