Em 24 anos de regime democrático (1994-2018) passaram vários presidentes da República (nove, entre Presidentes Eleitos, Presidentes de Transição e Presidentes Interinos); muitos Primeiros-ministros (dezanove). Realizaram-se cinco eleições legislativas e quatro eleições presidenciais – todas elas “livres, justas e transparentes”.
Oito Representantes de três Secretários Gerais das Naçōes Unidas (durante 19 anos, desde 1999) desempenharam com dedicação as suas funções na Guiné-Bissau. E, a título muito especial, tem de se registar o enorme e mutifacetado esforço que a CEDEAO tem assumido – fazendo mesmo deslocar para o “terreno” uma missão militar (a ECOMIB) -, para normalizar a Guiné-Bissau!
Mas como normalizar o funcionamento do Estado guineense com base num regime constitucional de governo que é completamente anormal à luz do princípio da separação de poderes?
Resultou dessa anormaliade instituída que, entre um persistente empenhamento internacional e demasiada rotação governamental, uma coisa permanecesse fortemente enraízada até hoje: a crise política que, nos últimos 24 anos, tem reproduzido o mesmo padrão de conflitualidade institucional.
- Resposta institucional
O desafio consiste em traduzir o valor-estabilidade política em resposta institucional por via de uma competente revisão da Constituição. Porque, de facto, e, mais ainda, de jure, a crise institucional na Guiné-Bissau resulta da própria “Organização do Poder Político” consagrada na Lei Constitucional n. 1/93.
Assim, é o próprio regime constitucional de governo que põe frente-a-frente o Presidente da República e o Primeiro-ministro como rivais políticos estratégicos. Por outras palavras, é o regime constitucional vigente que predetermina e, por conseguinte, favorece em vez de dificultar a instabilidade do poder político.
- Diplomacia
Resta saber que diplomacia é a mais adequada para resolver a longa crise política guineense: diplomacia para fazer eleiçōes ou diplomacia para restaurar a estabilidade política?
São escolhas que, contrariamente ao que parece estar a suceder, não deveriam ter sido articuladas na forma de um dilema: de ter de escolher só uma delas ou – o que também pode ser contraproducente – de desenvolver uma sequência inadequada. Por exemplo, de, primeiro, fazer as eleições deixando para “mais tarde” a primordial reforma política, isto é, a revisão da Constituição.
É certo: precisamos de fazer eleições e precisamos também de reformar a Constituição. Mas a revisão da Constituição deveria preceder a realização das eleiçōes. Ora, o discurso eleitoral que recentemente se tornou mais intenso, parece estar a “congelar” precisamente o núcleo essencial do Acordo de Conacri – a reforma política – remetendo, assim, o discurso reformista para o segundo plano!
Ainda bem que os membros do Conselho de Segurança, na reuniāo de 30 de agosto, “instaram as partes nacionais relevantes a continuar as consultas sobre a reforma constitucional antes das eleiçōes presidenciais de 2019” (Comunicado à Imprensa de 7 de Setembro). Mas – pergunto agora -, e se os mesmos membros do Conselho de Segurança tivessem instado as “partes nacionais relevantes” a ponderar a hipótese de uma reforma constitucional ainda antes das eleições legislativas, teria isso configurado uma diplomacia inadequada?
O certo é que, no ar, está a pairar uma pergunta pertinente. Que é esta: que implicaçōes poderiam resultar do facto de o próximo Primeiro-ministro ser escolhido com base num determinado modelo constitucional (este que ainda está em vigor) e, seis meses depois, a eleição do Presidente da República processar-se com base numa Constituição revista, imprevisível e, talvez, consagrando um novo regime constitucional incompatível com a da anterior Constituição (pré-revisão)? Esta questão pode ter escapado à atenção do Conselho de Segurança de 30 de Agosto, mas ela é incontornável e, por conseguinte, os quadros políticos guineenses têm o dever e a obrigação de a encarar de frente ainda que sózinhos, ou seja, com uma autonomia plena e responsável.
- Falta de tempo
Não se compreende que possa agora invocar-se a “falta de tempo” para deixar de fazer o que justificadamente deve ser feito: resolver a questão política número 1 do Estado guineense – a questão do regime de governo. Para fazer isso, deve sempre haver tempo. Certo é que, realmente, vai sempre “faltar tempo”, e vai faltar cada vez vez mais enquanto as “partes nacionais relevantes” não começarem a trabalhar intensamente na reforma política. Aliás, como pode saber-se a priori que “há falta de tempo”?
- Timing
Antes da realização das eleiçōes legislativas, a reforma política não cria desvantagem comparativa para nenhum dos protagonistas conhecidos ou emergentes, que conservariam intactas todas as suas respetivas opçōes, seja qual for a direção que tomasse a revisão constitucional: quer fosse para clarificar e consolidar a linha mais parlamentar, quer fosse para consagrar uma orientação presidencialista. Por isso, fazer a reforma política não depois, mas antes da realização das próximas eleiçōes legislativas parece ser preferível.
E mais. Depois das eleições legislativas – ao contrário -, a reforma política tenderia a transformar-se num dramático jogo de soma zero entre o Presidente da República e o Primeiro-ministro: “ponto ganho por um, é ponto perdido por outro”. É uma expetativa que pode radicalizar-se e, por causa de uma provável deriva negativa, gerar fortes resistências políticas como, aliás, já chegou a acontecer.
Em 1999, por exemplo, um Presidente da República, que não gostou da revisão constitiucional que o parlamento preparou, recusou-se a promulgá-la. Desde então, a nossa notável classe política decidiu retirar a reforma política da agenda parlamentar. Neste longo período de marasmo institucional autoconsentido, a crise política, sem fim à vista, continuou a degradar o Estado guinenese e a estigmatizar os seus dirigentes.
- Pacto de Estabilidade
O “pacto de estabilidade”, se for assinado, não será um mau exercício político. Vai ter o valor político (sobretudo o valor moral) que os signatários lhe decidirem atribuír. Sem força jurídica impositiva, provavelmente, o “pacto” cedo vai revelar suas limitações. É um “pacto” que dificilmente vai poder compensar um regime constitucional que, objetivamente, gera instabilidade do poder político.
- Oportunidade e necessidade
Em vinte e quatro anos de crise política – ora latente, ora declarada, por vezes sangrenta -, oportunidade e necessidade se combinam para, agora, a Guiné-Bissau restaurar a sua estabilidade político-institucional encerrando um ciclo longo de instabilidade política.
Oportunidade para viabilizar reformas do Estado necessárias que permanecerão letra morta enquanto não se restaurar a estabilidade institucional do poder político.
Oportunidade para – uma vez restaurada a estabilidade política – a Guiné-Bissau poder, enfim, encarar a sério a necessidade do seu desenvolvimento económico sustentável que, na conhecida expressão do Papa Paulo VI, é o “novo nome da Paz”.
Mas atenção: fazer apenas “boas eleiçōes” – e isso já ficou largamente demonstrado no para passado -, é muito pouco para dar resposta positiva às necessidades institucionais do Estado guineense. Aliás, não faltam boas razões para duvidar do mito de que, feitas as eleiçōes, logo, as coisas começam a resolver-se.
Enfim, o maior desafio político – para os guineenses como para os amigos da Guiné-Bissau – consiste em não permitir que seja desperdiçada a oportunidade, hoje aberta, de reformar a Constituição. De preferência, não antes das eleiçōes presidenciais. Antes, sim, das eleições legislativas.
Nova Iorque, 17 de setembro de 2018
Por: Fernando Delfim da Silva
Embaixador e analista político
Boa análize.
Subscrevo-me nessa sua idéia. Alias, já tinha subscrevido nessa idéia desde a assinatura do acordo de Connacri.
Em bom crioulo dizemos assim: “Boltia boltia i ka messinhu di camba mar”. Porque razão estámos a precipitar para as eleições quando todos nós sabemos que uma das principais causas dos sucessivos problemas nos ultimos 24 anos da democracia guineense está ligada com a nossa constitução?
Impeira a necessidade da pressão por parte da sociedade civil, que ao meu ver, deveria ser mais forte e empenhada nos assuntos nacionais de uma forma impercial.
Abraços.
Muito obrigado Sr. Dr. Fernando Delfim da Silva pela analise feita e isso me ajuda muito em compreender a situação politica do meu querido País Guine Bissau.
Obrigado!