Como ponto de partida, assumo a relevância conceitual desenvolvida por Amílcar Cabral à formação da sociedade guineense a partir da caraterização e análise de seus elementos constitutivos que tornou inteligível suas caraterísticas, no contexto da luta de libertação. Destaco a importância de suas formulações que envolveu estudos e pesquisas, com vista ao desenvolvimento da luta. Evocá-lo na atualidade, no campo das ciências sociais e humanas, em particular em sociologia, se faz cada vez mais pertinente, considerando as transformações sociais, políticas e culturais pelas quais a Guiné-Bissau vem enfrentado na contemporaneidade.
Os contornos conceituais e epistemológicos de Amílcar Cabral estão codificados em sua obra “A arma da Teoria”, de 1978, organizado por Mário Pinto de Andrade, além de vários outros textos que levantam questões sobra a “Análise de Alguns Tipos de Resistências, edição do PAIGC e DEDILD, imprensa nacional, de 1979. Amílcar Cabral deixou-nos também reflexões sobre a “Cultura Nacional”, Coleção Cabral Ka Muri, de 1984; questões e estudos de cunho político-militar e vários outros textos dispersos.
Para os objetivos da presente
reflexão, centrar-me-ei a) inicialmente situando o lugar epistemológico de
Cabral e, em seguida, faço uma análise do seu conceito de estrutura social
guineense a partir de sua obra “A Armada da Teoria. Unidade e Luta e finalizo
com algumas reflexões analíticas dessa teorização no contexto pós-colonial
contemporânea guineense.
No campo epistemológico, sabe-se que, para Amílcar Cabral, a análise da
estrutura social guineense só adquire relevância sociológica enquanto
manifestação da realidade concreta e objetiva independentemente das representações
que possamos ter sobre a realidade. Aquilo que estaria na nossa cabeça não
seria relevante, ou só se torna relevante partindo da realidade.
Esse princípio epistemológico, influenciado pelo conhecimento do marxismo, interpretado localmente, teve implicações substantivas na forma como Cabral escolheu olhar a estrutura social guineense. Esta, segundo Cabral, caracteriza-se de duas formas: vertical e horizontal, na sua estrutura interna. A sociedade vertical baseia-se na forma hierárquica da organização social e política, com forte estratificação social, em que a coletividade resulta de uma diferenciação de papéis. A sociedade horizontal, por sua vez possui uma organização social mais incipiente em termos de estratificação, marcada pela ausência de “sentido de Estado”. Entre essas duas estruturas, haveria uma terceira categoria denominada por Cabral de sociedade intermediária ou mestiça, oriunda sobretudo das Ilhas de Cabo Verde, vistos como intermediários entre indígenas e europeus, com forte influência sobre os nativos.
Qual seria a implicação dessa análise?
Há, aqui, duas implicações do conceito subjacente a contribuição de Cabral: a) a primeira implicação epistemológica é a de que o conceito de realidade em Cabral situa a estrutura social guineense no campo da produção. É a divisão do trabalho, parte integrante de uma realidade cultural específica, segundo Cabral, a base sobre a qual se estrutura a organização da sociedade horizontal que prioriza o modo de produção para explicar os mecanismos constitutivos das relações que integram todo o junto da esfera societal.
Subjacente a esta interpretação, há uma visão funcionalista da sociedade guineense onde é a especialização de funções que situa os guineenses na estrutura social. A premissa da ideia da realidade como sui generis emergem das relações de produção. A segunda implicação b) é de ordem prática. A estrutura social das sociedades horizontais teria que passar por diversos níveis de desenvolvimento histórico de modo de produção para níveis mais avançados em termos de estratificação social e cultural. Uma interpretação que se possa fazer é a de que as sociedades horizontais estariam de fora no campo da disputa política onde há uma acentuada presença dos grupos pertencentes a sociedade vertical com leque de orientações políticas diversas que caracteriza a pequena burguesia como sujeito central e único capaz de ALAVANCAR um novo Estado, deslocando a ideia de “classe”, próprio do marxismo, para a ideia da “pequena burguesia” que, para Cabral teria que suicidar-se possibilitando a incorporação radical da ideia de luta de libertação nacional na busca estratégica para o desenvolvimento e formação do homem novo, o que impediria qualquer fragmentação na busca pela unidade entre diferentes grupos sociais e étnicos.
Ainda sobre a implicação prática dessa visão de sociedade em Cabral, ditada no contexto colonial, há que realçar que está havendo atualmente uma desvirtualização ou instrumentalização política da ideia de sociedade horizontal fora do seu contexto de busca da unidade para excluir grupos sociais horizontais supostamente por não possuir o “sentido de Estado”. Próprio Cabral sobre sua teoria social reconheceu os limites de sua análise com a emergência de uma “burguesia nativa guineense” em uma sociedade cada vez mais heterogênea e aberta.
Isto também revela os limites do conceito da sociedade vertical e horizontal dual para a compreensão da sociedade guineense na atualidade, marcada por um conjunto de jogos de forças, grupos, interesses, com forte presença de capital internacional, identidades, novas posições de sujeitos e práticas articulatórias que se constituem para além da base material da inserção dos indivíduos no modo de produção. Deste modo há que considerar a proliferação de identidades e a presença de grupos étnicos da sociedade horizontal na esfera política, sobretudo no Estado, o qual coloca a necessidade de formulação de novas reflexões conceituais e teóricas, particularmente, no campo da teoria social crítica, que dialogue com Cabral, mas sem reduzir-se a ele. É necessário e urgente reposicionar Amílcar Cabral no campo de um conhecimento crítico e autônomo, abrindo o espaço para um diálogo necessário. É desse lado imaginativo e autônomo que Cabral gostaria de estar para uma nova catarse.
Por: Ricardino Dumas Teixeira,
Guineense, PhD em Sociologia.