Presenciamos, ultimamente, um debate político e intelectual em torno da necessidade de “unidade” na Guiné-Bissau (unidade entre os guineenses). A origem da ideia de “unidade” pode ser encontrada, grosso modo, no período entre 1950 e 1973, na sequência da fundação do Movimento de Libertação que lutou pela independência de Guiné e Cabo Verde, sob direção intelectual de Amílcar Cabral, que dirigiu a luta comum dos dois países
Para compreender a formulação de discurso de “unidade” e seu contexto de enunciação, dois conceitos fundamentais formulados por Cabral se impõe analisar, no âmbito da Sociologia. O primeiro é a noção de “povo”, entendido por Cabral como resultado do contexto histórico que vive a Guiné e Cabo Verde. Isto é, para Cabral, ambos países devem ser entendidos em relação sua própria história. Nesse sentido, pertencia ao “povo” aquele que nasceu na Guiné ou nas Ilhas de Cabo Verde e desejava aquilo que correspondia à necessidade fundamental de uma história comum: a luta contra a dominação colonial.
Nessa acepção, o povo era entendido por Cabral como sendo a diretoria do partido, que representava o povo, expressa na afirmação de que ai de quem se enganasse que representava o povo porque nasceu no pico de Antónia e no mais profundo da nossa terra (…) O povo é a direção do nosso partido. O segundo conceito introduzido por Amílcar Cabral é a noção da “população”, entendido por ele como um todo genérico. Fica bastante claro que a preocupação de Cabral tinha a ver com a necessidade de “unidade nacional”, num contexto de hierarquias raciais que separavam “assimilados” e “indígenas”, cidade e campo, cabo-verdianos e guineenses.
Dentro de um debate mais amplo, sua preocupação insere-se no interior do marxismo, mas de forma distinta. Enquanto Karl Marx estava preocupado com as condições estruturais da imergência do capitalismo na Europa, com sua distinção entre “população” e “classe”, gerada no conflito com capital, com realce na classe dominante, Cabral relativizava a noção de “classe”, sem negá-la, para a luta de libertação e pedia seu suicídio, porque, segundo Cabral, não dispunha de base econômica e coesão interna para a construção da “unidade” para a luta. Por isso Cabral introduziu a noção de “povo” e “população”.
É aqui, também, que os grupos étnicos se identificariam com o “povo”, em contraposição à “população”, desde que compartilhassem o projeto de unificação binacional, defendido pelo Movimento de Libertação (PAIGC). A questão da etnia ressurgiu com todo vigor, mas, contrapondo-se à ideia dos que subordinavam a etnicidade a construção do Estado-nação (por exemplo, Samora Machel, que defendia a ideia segundo a qual, para que a nação vivesse, a tribo teria que morrer), Amílcar Cabral acreditava que a etnicidade foi o motor da luta de libertação para a construção da identidade nacional.
O desafio maior era garantir que a etnicidade, que é oposta da instrumentalização do tribalismo pelos grupos destribalizados, não inibisse a unificação popular-nacional. Quais seriam implicações dessa análise na atualidade, no âmbito da Sociologia? Em primeiro lugar, como o próprio Cabral assumiu, a formulação de “unidade” Guiné e Cabo Verde para a luta de libertação seria insuficiente, com a saída do colonialismo. É aqui, também, que se colocaria a questão da etnicidade.
Outra implicação, subjacente à primeira, é o fato de que, na atualidade, a construção da “unidade” orienta-se por pressupostos que, embora não negue a herança colonial, o pluralismo político lhe atribui um caráter relacional de pluralidade de interesses sociopolíticos e econômico-cultural no processo de luta política para além das fronteiras regidas entre o colonizado e o colonizador, a exemplo de demandas de etnicidade e religiosidade. As disputas políticas intensificaram-se com a disputa eleitoral no mercado de voto, em que a idéia da unidade, reforma de mentalidade e homem novo, aparecem como significantes vazios, que merecem novas práticas articulatórias para a fixação de um novo sentido.
Como consequência do processo de pluralismo e em contraposição à “unidade” dada a priori pela história comum Guiné e Cabo Verde, emergem novos protagonistas, no jogo político eleitoral. A terceira implicação tem a ver com a ênfase dada por Cabral a ideia de partido como constitutivo da noção do “povo”, e, consequentemente, da unidade nacional. Esta ênfase é vista por mim na atualidade como problemática para a compressão dos desafios contemporâneos do país e pode ser considerado o ponto a partir do qual o conceito de Cabral precisa de uma atualização, dialogando com sua formulação e reconhecendo o contexto de sua enunciação, mas sem reduzir-se a ele. A ruptura Guine e Cabo Verde e a constituição de dois Estados independentes, evidenciam tal necessidade conceitual. E reforça tal atualização.
Isto porque as mudanças ocorridas em quase todos os setores da vida nacional guineense, com diferentes implicações, sejam no campo cultural, com a entrada de grupos étnicos no processo político, com peso eleitoral, seja no campo econômico, no contexto global da dinâmica do capital internacional e do crime organizado transnacional, coloca, hoje, a necessidade de um debate sério sobre a possibilidade de construção de unidade, em busca da integração, e, consequentemente, sem asfixiar as diferenças, em busca de um Estado plural. É aqui, também, que o debate sobre o “mercado nacional” ou “questão nacional” como elemento fundamental para a mudança econômica, social, política e cultural na atual conjuntura da globalização se coloca.
É a visão defendida por Carlos Lopes, sociólogo guineense, em diálogo com o marxismo, em busca de uma nova integração, um tema contemporâneo de debate clássico que precisamos debater.
Por: Ricardino Dumas Teixeira
PhD em sociologia