A Guiné-Bissau hoje, infelizmente (dói-me como guineense fazer essa afirmação), está na vanguarda, em sua sub-região, quando o assunto é instabilidade político-governativa. Os recorrentes impasses entre políticos (as vezes com envolvimento direto dos militares) possibilitaram, por exemplo, a eclosão do conflito de 7 de junho de 1998, um episódio da vida política, econômica e social do país para esquecer! Além dos sucessíveis e incontáveis levantamentos (golpes) que se sucederam dessa data em diante, o que fortaleceu mais ainda a narrativa da necessidade de presença constante da comunidade internacional no país, sobretudo da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO).
A presença dessa organização sub-regional, do qual o país é tradicional membro, no entanto, tem merecido atenção e, ao mesmo tempo, provocado debates com diferentes visões e interpretações, claro, entre os cidadãos e não só, sobretudo no que concerne à sua soberania. São muitas as posições que defendem que o país está à mercê da referida organização e, consequentemente, perdido a sua soberania diante das decisões e ou imposições desta perante os atritos no seio dos políticos guineenses com finalidade, à priori, de encontrar soluções e propor inflexões que possam granjear consensos e, de uma maneira ou de outra, resultar em imediata reposição da ordem e da normalidade constitucional, administrativa e governativa em decorrência de qualquer sobressalto.
Ora, em minha modesta opinião não sustento a tese de que a Guiné-Bissau tenha perdido a sua soberania por conta da constante presença da organização supramencionada, apesar de respeitar a opinião contrária de quem pense diferente a respeito do tema, mais a diante irei invocar a razão dessa afirmativa. Por ora vou ater-me ao conceito da soberania na perspectiva das Relações Internacionais, embora seja um debate hodierno nesse campo do saber, observando as premissas do direito internacional que, por sua vez, articula, implementa e regulamenta os tratados internacionais.
A soberania no sentido clássico do termo pressupõe a supremacia total, o poder absoluto. O poder de um Estado sobre o seu povo e o seu território, por exemplo; o poder de um rei sobre seu reinado assim por diante, se consubstanciando, desse modo, em um poder ilimitado, isto no seu aspecto interno (ARIOSI, 2004). Enquanto que no seu aspecto externo ela pressupõe a igualdade entre os Estados, tornando assim, dessa vez, e, nesse ponto de vista em específico, em um poder limitado (isto no sentido de que nenhum Estado pode imiscuir nas questões internas do outro), idem. A soberania, de toda forma, sobretudo nos moldes hoje conhecidos, surgidos nos meados do século XV, junto com o nascimento do Estado Moderno implica rigorosamente a possessão do poder de coação, do poder absoluto e total do Estado sobre seu povo e território.
Não obstante, esta concepção da soberania parece hoje não ter mais sustentabilidade, digamos assim, diante da globalização e do nível de interdependência alcançado pelos Estados, o que não quer dizer que suas soberanias sejam nulas, vale enfatizar. Nas Relações Internacionais contemporâneas os Estados são sujeitos a criar e participar de blocos cooperativos sub-regionais, regionais e globais, sendo obrigados a cumprir com as normas e ordenamentos jurídicos internacionais que estes adotarem para reger suas ações e condutas. Em outras palavras, pode-se dizer que os Estados são obrigados a fazer “concessão de parte de sua soberania por meio de tratados internacionais”, mas por livre e espontânea vontade.
Ou seja, observando o chamado Direito Comunitário, que encontra sua base e fundamentação na teoria da Soberania Compartilhada, “ao firmar um Tratado qualquer, os Estados abdicam de uma parcela de sua soberania e se obrigam a reconhecer como legítimo o direito da comunidade internacional de observar sua ação interna sobre o assunto de que cuida o instrumento jurídico negociado e livremente aceito” (GÓIS, 2000, p.1). Outrossim, sob fiscalização de blocos econômicos regionais dos quais são membros os Estados são obrigados a respeitar e a fazer respeitar as leis que regem suas condutas, pois “transferiram, por delegação, poderes normativos próprios de cujo exercício decorrem normas com efeitos diretos no ordenamento de cada um destes Estados” (XAVIER, 1993, 163).
Nesta ordem de ideias, no entanto, o tratado da CEDEAO (do qual a Guiné-Bissau é um dos primeiros Estados a assinar), um instrumento jurídico internacional legal, assinado pelos chefes de Estado e de Governos dos 16 membros em 1975, em Lagos Nigéria e revisto em 1993 no Cotonou (Benin), já com 15 membros (como é praxe desses tipos de tratados internacionais como acabamos de ver) vinculou a soberania desses Estados – que tomando liberdade de pensamento e ação decidiram trabalhar em conjunto – formando um único bloco econômico regional para enfrentar os desafios que a globalização tem imposto aos Estados modernos/contemporâneos. “Logo na parte final desse artigo disponibilizarei um link para acesso ao referido tratado revisto em formato PDF para os interessados lerem, de modo a conhecer melhor o teor do que estou aqui problematizando”.
Mas para fechar, como referi em um dos trechos acima e agora com base em todas essas análises assumo e reitero: a Guiné-Bissau ainda com problemas e fragilidades políticas que apresenta é um Estado soberano e assim continuará sendo, pelo menos nesse molde que a soberania hoje é concebida. Nas Relações Internacionais contemporâneas os Estados vivem e convivem em uma aguda interdependência como apontam os liberais (idealistas), e isso acaba dando lugar para a criação de organizações como a CEDEAO, visando amparar os seus membros a encontrarem o melhor caminho para o desenvolvimento, o que não implica necessariamente a perda da soberania dos mesmos.
No caso particular da Guiné-Bissau, o que tem se verificado, na verdade, é o exagero da classe política local em promover discórdia e desorganização política no país e isso, natural e automaticamente, como é de se esperar, tem acionado a organização sub-regional como órgão competente e munido de instrumentos legais a atuar em nome da comunidade internacional para acompanhar de perto e poder ajudar o país a reencontrar o seu rumo.
É importante assegurar a você, assíduo leitor/a do O’Democrata que, não se trata de simpatizar e ou celebrar a presença dessa organização no nosso país, mas sim de meramente constatar os fatos relacionados com um Sistema-Mundo do qual compartilhamos, sob o ponto de vista de um campo de saber específico, as Relações Internacionais. O problema maior, em minha opinião, não é a constante presença e interferência da CEDEAO nas querelas internas do país (que até não constituiria nenhum problema partindo dos pressupostos do direito internacional e de tratados assinados como enfatizamos de antemão). É, no fim das contas, a nossa classe política e a sua falta de seriedade para com a nação, sua humilde população e suas instituições republicanas. Senão, porque a mesma organização (CEDEAO) não se faz tão presente assim em outros países daí da nossa sub-região, assinantes desse mesmo tratado? Uma indagação para reflexão profunda, cautelosa e ponderada de todos nós!
Por: Deuinalom Fernando Cambanco
Mestre em Relações Internacionais
Salvador, Bahia, Brasil.
Referências
ARIOSI, Mariângela F.. Direito Internacional e soberania nacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 498, 17 nov. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5942. Acesso em: 13 out. 2019.
GÓIS, Ancelmo César Lins de. Direito internacional e globalização face às questões de direitos humanos. <jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=1607> acessado em 29/05/2002.
XAVIER, Alberto. Direito tributário internacional no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1993.
COMISSÃO DE CEDEAO. Tratado Revisado. Disponível em: <https://www.ecowas.int/wp-content/uploads/2015/02/Traite-Revise.pdf>, acesso em: 08/10/2019.