Crôncia: AS FERIDAS NÃO CICATRIZADAS

Para todas as meninas desavisadas desta nossa frátria, mátria, pátria

O quarto estava escuro. As lâmpadas destruídas. Os pequenos candelabros que lembravam os tempos em que reinavam soberanas nas cidadelas estas pequenas feixes de luzes, haviam se extinguido. Os candeeiros que levavam pavios enfiados no buraco central da tampa de cerveja, cuja parte mais longa estava metido no interior da garrafa, cheia de petróleo que alumiavam as casas quando era noite de chuva ou de seca, estava também eles a funcionar a meio gás.

Os candeeiros! Gostava muito delas, pois elas só perdiam para o luar. Mas como o luar não penetrava no interior das casas, eram os candeeiros que alumiavam as movimentações das pessoas no interior dos lares. Também eram eles que que imperavam ao redor do fogo, em que os mais velhos contavam estórias aos mais novos. Deleitávamos, sem muita consciência interpretativa, dos contos de fadas, de reis e rainhas, de príncepes e princezas, etc.

Imaginávamos, nós as crinças, reunidas em torno de um fogo aceso a lenha, os ouvidos e todas as atenções voltadas àquela voz uníssona que instigava a nossa imaginação. Inebriava-nos com a doçura, o encanto, e a sabedoria. Aquela voz que dava voz às pessooas, aos animais, e a outros seres medonhos, alguns até terríveis. Monstros de todos os continentes, monstros de todas as partes do planeta.

A velha narrava com altivez sapiencial estórias de tempos imemoriais. De lugares longínquos, e inacessíveis.

Porém uma das estórias que marcaram a minha infância e à minha adolescência, era esta que eu vou narrar em 1ª pessoa. Não a minha o contador, mas reporto-me à velha, contando em pessoa, o que havia sucedido a uma menina de 16 anos.

Aconteceu. Todas as classes sociais, em casa, na rua, numa festa e até mesmo no trabalho. A vítima pode estar inconsciente, ou mesmo, consciente.

  1. A dor da primeira vez sem consentimento

Assim:

Aos 16 anos, quando ainda adolescente fui dopada. Não sabia exatamente que tipo de substância havia ingerido. Quem o fez foi o meu namorado, por quem nutria muito amor, e admiração. Aproveitou o meu estado inconsciente e violentou-me sexulamnete. Tudo porque discutíamos sempre a questão de experimentar sexo, porém como desejava me casar virgem… Queria que o sexo acontecesse na nossa primeira noite de núpcias. Que fosse isto um pacto entre nós dois. Pois queria que o selo fosse sair nesse dia.

Entretanto não foi o caso.  Naquele e nos dias subsequentes comecei a odiar o quarto em que curtíamos à bessa música dos mais diversos estilos, líamos livros que versavam sobre amores bem sucedidos, assistíamos a filmes com excelentes atores de Hollywood.

Foi um desastre. Vivi um pesadelo, quase inconsciente fui violentada. E, como se pode imaginar tive o meu sonho destruído.

Tinha 16 anos. E sonhava em me casar com o meu namorado quatro anos mais velho do que eu; construir, enfim, uma família. Eu era virgem e queria me entregar apenas depois do casamento.

O meu namorado sabia desse meu sacro desejo.

Depois daquele ato indesejável, inimaginado, comecei a ver o meu mundo a desabar.

Tínhamos almoçado juntos, e parecia que tudo correria bem. Até que comecei a sentir cansaço.Estava cansada, exausta, sem forças para manter-me de pé e comecei a me sentir sonolenta. Nisso o meu namorado me trouxe um comprimido que alegava ser um pó energético. No entanto, eu não queria tomar nada, mas ele insistiu, disse que não me faria mal nenhum, só tiraria o meu sono, já que estava muito sonolenta. Eu achei o comprimido estranho, mas a minha inocência me fez confiar cegamente nas palavras dele.

Tomei.

Ora,a partir de então, o sono que eu estava sentindo começou a aumentar, e veio acompanhado de vertigens. Eu sentia como se estivesse saindo fora de mim mesma. Contei-lhe sobre esse mal-estar, mas ele parecia não se importar. Tudo parecia escuro, estava com a consciência comprometida. Foi então que ele me arrastou até o quarto dele, oferecendo-me um outro comprimido.

Lembro-me, até a data presente, que as lágrimas desciam da minha face torrencialmente. Havia perdido definitivamente o controlo do meu próprio corpo. Engoli a seco o compromido. Ele me dopou com vários tipos de antidepressivos, cuja proveniência eu mesma descomhecia.

Começou então a tirar a minha roupa.

Horrível. Lembro-me apenas de reflexos, de choro convulsivo, de, sem forças para reagir, ter de ceder, inconscientemente aos seus caprichos.

Foi um dia de choque. Pois, naquele quarto vivi o maior pesadelo da minha vida. As imagens, as palavras, os gestos e as intenções maléficas continuam vivas na minha memória.

Inconsciente, aí pensei que, efetivamente fui estuprada e tive o meu sonho de casar virgem destruído. Fiquei, em suma, em pedaços, como se fosse pedaços de retalhos não costuráveis. Ele se sentia satisfeito, como quem tivesse levantado, naquele momento, um troféu de há muito desejado, de há muito almejado.

Foi assim que acabou a cena horrorosa, desvirginou-me abruptamente. Estupidamente.

2. O calabouxo dos caprichos sexuais sem direitos nenhuns

Estava decidida a contar a minha família. Sabia que não seria fácial. Mas tinha de contar. Não sabia, e nem imaginava que resultado, por mínimo que fosse, poderia advir desta denúnicia. Comecei, então, a contar o que tinha acontecido. Por incrível que pareça quase todos os membros da minha família começaram a ofender a minha honra aviltada, parecia que eu tinha consentido a isto, e que estava a incriminar alguém. Ninguém se importou com o fato de que eu havia sido violentada, porque estava dopada.

Mas, quando perceberam a minha reação negativa à reação deles, decidiram conduzir-me ao hospital.

E, como é de se notar, não houve queixa nenhuma nas autoridades judiciais. Nenhum boletim de ocorrência foi registado. A família estava possessa de vergonha. E, por ser ignorante, pensava que todos nós seríamos apontados os dedos das mãos como se fosse um sacrilégio pelas pessoas quando elas soubessem do sucedido.

Na verdade, nas famílias tradicionais, onde o valor da virgindade tem grande valor ético e moral, deveria eu servir de exemplo para os outros, não colocando o meu caso na boca do mundo, diziam-me. Acuado, desisti de considerar a hipótese de denúncia e/ou entrar com uma queixa judicial..

Confesso que tenho pavor de ficar sozinha; mas principalmente me sinto humilhada, pisada e, o mais grave que isso, tendo que continuamente manter relações sexuais, sem desejo e contra a minha vontade, com o meu namorado.

A sensação de solidão me persegue; por isso não conseguia desvincilhar-me dele até que ele, por capricho satisfeito, cansou-se de mim, dispensando assim o nosso namoro.

Foi um gesto muito arrogante da parte dele, ao afirmar, depois deflorar-me que sentia nojo de mim.

Mas há momentos em que as feridas nunca cicatrizadas, como esta minha, de ver um sonho perdido em algum lugar do tempo ardem com toda a força.

Preciso de forças para seguir em frente, para dar um basta à solidão, e ao desespero de ver um sonho perdido no horizonte.

Alimento, em suma, a fé de que esse episódio trágico ainda pode se perder no tempo; e, morrer, efetivamente, no esquecimento.

Caro leitor d`O Democrata vá em frente; senão, de repente, desisto-me desta merda toda. E tola!

Antula, 26 de setembro de 2019.

Por: Jorge Otinta, poeta e crítico literário guineense

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