O Presidente da República (PR), General Umaro Sissoco Embaló (USE) proporcionou antes de ontem um encontro, com alguns representantes religiosos para Iftar (a quebra de jejum diário durante o Ramadão). Na sua intervenção, disse que “caso cometa algum erro, os presentes não deverão hesitar em corrigirem, apesar de eu ser o PR”. Esta abertura e relação de proximidade que se pretende criar, não deveria apenas ficar reservada aos seus convidados, mas sim extensível a todos os cidadãos sem discriminação de pertença étnica, religiosa ou partidária, uma vez que é Presidente de todos os guineenses. Daqui transito para analisar a situação política vigente e apontar algumas pistas.
A Comissão Nacional das Eleições (CNE), em várias ocasiões, declarou o USE como vencedor da segunda volta das eleições presidenciais com 53,55% contra 46, 45% do Domingos Simões Pereira (DSP). Note-se que as eleições foram unanimemente consideradas como livres, justas e transparentes pela generalidade dos observadores nacionais e internacionais.
Não se conformando com os resultados, o DSP interpôs um recurso junto do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), alegando irregularidades no processo eleitoral. Após a apreciação preliminar do mesmo, o STJ constatou a falta da ata do apuramento nacional e ordenou o suprimento da omissão. A CNE reconheceu que a referida foi elaborada, mas não tinha sido assinada. Por conseguinte, reuniu o órgão competente e a ata foi assinada, mas o STJ discordou da forma como o fez e, numa decisão de aclaração, ordenou a repetição da operação de apuramento nacional em vez de simples assinatura da ata em falta. Seguiram-se desentendimentos de leituras das disposições legais entre a CNE e o STJ.Entretanto no dia 27 de fevereiro do ano em curso, o USE toma a posse, concretizando a ameaça que havia feito em como tomaria a posse Kun fayakun (vai acontecer). Para o efeito, contou com os seus apoiantes e de alguma ala dos militares, em particular o General António Indjai, antigo Chefe de Estado Maior General das Forças Armadas, que esteve presente na tomada de posse.
Destacam-se os apoios do Nuno Gomes Nabiam, então Primeiro Vice-Presidente da Assembleia Nacional Popular, que lhe conferiu a posse; do Partido da Renovação Social (PRS), terceira força política na ANP; e do Presidente da República (PR) cessante, José Mário Vaz, que lhe entregou a Presidência da República, não obstante a pendência do contencioso eleitoral no STJ.
Por outro e não menos importante, a não intervenção das Forças Multinacionais (ECOMIB) da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO)instaladas no país desde o ultimo golpe de 12 de abril de 2012 para proteger os órgãos da soberania e as instituições da república, afigura-se indispensável para efetivação da posse sem sobressaltos. Seguiu-se o abandono do país pelo Representante Diplomático da CEDEAO na Guiné-Bissau, Blaise Diplo Djomand, depois de ter sido declarado persona non grata pelas novas autoridades. Destino diferente tiveram as forças do ECOMIB, que continuaram no país, mas acantonadas nas suas bases, por a sua presença ser considerada necessária.
Ato contínuo, o USE, para consumar o controlo efetivo do poder, derrubou o Governo do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo verde (PAIGC)dirigido por Aristides Gomes e nomeou o Nuno Gomes Nabiam como Primeiro-ministro. Recorde-se que o novo Primeiro-Ministro é Presidente do Partido da Assembleia do Povo Unido – Partido Democrático da Guiné-Bissau (APU-PDGB), partido com cinco (5) deputados na ANP e que tinha assinado um acordo de incidência parlamentar de apoio ao Governo de Aristides Gomes, acordo esse que lhe valeu o lugar de Primeiro Vice-Presidente da ANP, lugar que abandonou para ocupar a Chefia do Governo.
Num primeiro momento, a CEDEAO distanciou-se de USE e do seu Governo, mas, finalmente, viria reconhecer a vitória de USE na segunda volta das presidenciais de 29 de dezembro de 2019 e como Presidente da República, não obstante os termos em que ocorreu a tomada da posse. Entretanto, no ponto n.º 7 do Comunicado de reconhecimento, a CEDEAO instou o Presidente USE a proceder à nomeação de um Primeiro-ministro e de um novo Governo até 22 de maio de 2020, em conformidade com as disposições da Constituição e de acordo com os resultados das eleições legislativas. A decisão da CEDEAO contou com o aval da Comunidade Internacional (CI), nomeadamente da União Europeia(UA), União Africana (UA), Organização das Nações Unidas (ONU) e de alguns países. Há quem diga que a impaciência da CEDEAO em aguardar pela decisão da entidade competente na matéria do contencioso eleitoral foi forjada pela tríade Níger, Nigéria e o Senegal. O Presidente do Senegal, Macky Sall, é acusado de patrocinar a candidatura de USE em nome dos interesses do Senegal e de afinidades pessoais. Os apoiantes de USE defendem-se com o facto de a CEDEAO, ora acusada, ter sido a mesma que aplicou sanções aos opositores do PAIGC no passado.
Apesar do posicionamento da CEDEAO ter suscitado ondas de indignações e criticado amplamente, esta solução pareceria ser viável para desempatar a situação e serenar os ânimos. Numa das suas mensagens semanais nas redes sociais, através de um vídeo que circula no Facebook, ao pronunciar-se sobre o encontro solicitado por USE para auscultação dos partidos políticos, com vista a encontrar solução para formação de um novo Governo, o Presidente do PAIGC e ex-candidato às eleições presidenciais, declarou que:
“pese embora não concordamos com a posição da CEDEAO, dei aval ao partido para marcar a presença no encontro. Porque não podíamos estar de acordo que a CEDEAO quer substituir os órgãos da soberania e tomar a decisão sobre o que está a acontecer na Guiné-Bissau, a partir de Abuja. Contudo, temos que tentar compreenderem que contexto a CEDEAO entendeu buscar uma solução política. Se realmente a CEDEAO está sério, podem ir ouvir o que USE tem a dizer, talvez pode permitir para desbloquear a situação (Fonte: PAIGC 2020, Facebook).
Ficou evidente que o líder do PAIGC estava desapontado com a decisão da CEDEAO, mas na impossibilidade de inverter a dinâmica decorrente do reconhecimento do USE pela CEDEAO, seguida do resto da CI, ficou implícito que o PAIGC só aceitaria esta solução se, enquanto partido vencedor de eleições legislativas, recuperar a chefia do Governo, nos termos do Acordo de Incidência Parlamentar que suportou o governo liderado pelo Aristides Gomes cujo programa foi aprovado no parlamento.
Se, por um lado, a estratégia adotada pela CEDEAO para pôr fim à crise política pós-eleitoral permitiu estabilizar a situação ao nível da Presidência da República, por outro, a ambiguidade do ponto 7 do Comunicado abriu espaço para uma nova disputa. Uns defendem que o ponto 7 do Comunicado de reconhecimento requer a devolução simples do poder ao PAIGC, nos termos dos resultados eleitorais e dos acordos assinados com outras forças políticas. Outros advogam que tudo irá depender da correlação de forças que existir depois das presidenciais, sobretudo depois do Nuno Gomes Nabiam (Primeiro-Ministro) e alguns dirigentes terem decidido rescindir o Acordo de Incidência Parlamentar com o PAIGC para fazer outro Acordo de Incidência Parlamentar com oMovimento para a Alternância Democrática (MADEM-G15) e PRS. Para a consolidação deste acordo, o APU-PDGB tinha que contar com a fidelidade dos seus deputados, mas não foi o caso. Os seus quatro deputados decidiram manter-se fiéis ao Acordo que o partido tinha assinado com o PAIGC.
Na sequência das audições aos partidos e individualidade visando a formação de um novo Governo até 22 do mês em curso, o USE enviou uma carta ao PAIGC no sentido de procurar uma solução governativa. Por seu turno, o PAIGC já pediu negociações ao MADEM-G15 e ao APU-PDGB. As negociações ora abertas entre os partidos que suportam o atual governo e o PAIGC conferem com a pretensão do USE de patrocinar um Governo de Unidade Nacional.
É minha convicção que, pela envergadura das reformas que esperam há mais de uma década, entre as quais a reforma do sistema político e do sector da defesa e segurança, só um consenso nacional alargado pode viabilizar um governo reformista. Não será do interesse do povo um resultado de negociações entre os partidos envolvidos que não resulte num consenso reformista. Os resultados das eleições legislativas que não deram maiorias claras a nenhum dos partidos para governar sozinho não deixam dúvidas sobre a vontade do povo de ver um entendimento entre os partidos representados na ANP, a fim estabilizar o país, fazer as reformas necessárias e criar a felicidade a que tem direito.
Apesar da sombra que pairava sobre a forma como iriam decorrer as audições, o convite do Presidente USE ao PAIGC para apresentar uma solução governativa e a disponibilidade dos partidos para negociar uma solução governativa estável, criam um clima que aponta que o país está em vias de se reencontrar para fazer face aos desafios que tem pela frente, sobretudo numa altura em que a pandemia parece não abrandar no país.
Até aqui, o Presidente USE parece ter feito o que lhe cabe: pôr os partidos a falarem entre si. Espera-se que os partidos correspondam. O povo agradecerá.
Por: Ismael Sadilú Sanhá,
Doutorando em Políticas Públicas pelo ISCTE
Até não precisava fazer porque o povo já fez era só para nomear um primeiro ministro e basta.