
[REPORTAGEM_março 2022] Os centros de acolhimento da Associação Guineense de Reabilitação e Integração dos Cegos (AGRICE) deparam-se com dificuldades e os utentes com cegueira que os centros acolhem enfrentam problemas de falta de géneros alimentícios, de higiene básica e de alojamentos adequados, bem como de transportes para as escolas e universidades.
Todos esses constrangimentos têm afetado grandemente o funcionamento dos dois centros que a Associação Guineense de Reabilitação e Integração dos Cegos (AGRICE) gere, disse a organização ao jornal O Democrata.
Uma equipa do jornal O Democrata deslocou-se ao terreno, no último fim-de-semana e visitou os dois centros [lares e escolas], incluindo o jardim. Os relatos recolhidos e a realidade constatada ilustram uma situação de “precariedade tremenda” dos lares, particularmente o lar do Bissaquel, arredores de Safim, região de Biombo.
O lar de Bissaquel que é considerado “lar jovem/ Moscovo”, porque atende jovens maiores de 14 anos de idade e funciona num pavilhão improvisado . Tem uma única sala que funciona como quarto, armazém de alimentos e outros bens. O pequeno pavilhão não possui electricidade, apenas uma torneira junto do depósito de água ao lado do pavilhão onde apanham a água.
Atualmente acolhe 20 jovens e tem sete camas beliches e uma solteira. A casa “Moscovo” é dirigida por Lamé Fernando Quadé, um dos jovens acolhidos pela AGRICE.
Lamé Fernando Quadé, com a alcunha de Salomão, foi acolhido aos sete anos de idade, em 2006. Atualmente tem 23 anos de idade e estuda o décimo segundo ano de escolaridade no liceu Samora Moisés Machel, no quadro da introdução do ensino especial inclusivo.
Salomão explicou à nossa equipa de reportagem que o centro depara-se com grandes problemas, essencialmente a falta de produtos alimentícios, higiénicos e de deslocação para escolas e universidades.
Revelou que diariamente gastam 2500 francos CFA para as refeições e consomem 7 quilogramas de arroz, tendo sublinhado que a sua deslocação às escolas e às universidades está a ser muito difícil, porque a organização que os acolhe agora só tem um carro disponível para os dois lares.
De acordo com Salomão, o lar jovem só tem a cozinheira e que as outras tarefas são desempenhadas por eles, nomeadamente a limpeza, lavar a roupa e a louça. Referiu que todas essas tarefas são cumpridas mediante uma escala.
“De quando em vez recebemos visitas de alguns meninos dos arredores do lar, que às vezes nos informam se a nossa roupa está limpa ou não ou se tem manchas”, afirmou e disse que para melhor do estado do lar estabeleceram-se regras internas, principalmente as horas de recolher e de estudo. Revelou que o lar conta com 20 jovens, dos quais apenas 14 vivem no pavilhão e outros moram juntos dos parentes ou familiares, mas todas as suas necessidades básicas são garantidas pela AGRICE.
Apesar de viverem no mesmo lar, Lamé disse que gozam de liberdade de escolhas, praticam diferentes religiões, porque saíram de diferentes convivências e comunidades, mas a religião predominante é a cristã evangélica e considerou “muito importante” a religião no seio das pessoas com deficiência.
Informou que todos os jovens que o centro acolhe frequentam escola, uns frequentam a própria escola da organização Bengala Branca, outros continuam a estudar a língua braille, de forma a tornar mais fácil a sua inclusão no ensino normal.
“Com a introdução do ensino especial inclusivo, a AGRICE estabeleceu contatos com várias escolas e algumas disponibilizaram algumas vagas, o que nos permite a assistir as aulas como alunos normais, mas os exames e as avaliações são feitas oralmente”, salientou.
Para Salomão, a avaliação oral serve para provar a sociedade que não são inúteis nem são facilitados. Realçou a importância de serem incluídos na escrita braille para que sua inclusão seja mais eficaz, contudo, disse temer que não seja fácil devido à atual situação do país.
Lamé Fernando Quadé afirmou que nos primeiros momentos, não lhes era fácil conviver com outros alunos com um “estado físico normal”, tendo em conta o preconceito que se tem das pessoas portadoras de deficiência, particularmente os deficientes visuais.
“Nos primeiros tempos sentíamo-nos isolados, mas quando começaram os exames já éramos vistos diferentes e tratados de outra forma. Felizmente, os preconceitos sobre o nosso estado físico tem estado a diminuir e nós estamos a esforçarmo-nos cada vez mais para o bom nome dos surdos e cegos e temos estado a trabalhar para que no futuro os nossos irmãos mais novos não enfrentem preconceitos e a discriminação que passamos”, enfatizou.
Perante estes fatos, defendeu que é preciso um envolvimento sério do Estado perante a discriminação e preconceitos que a sociedade, em geral, tem para com os deficientes, investindo na consciencialização e sensibilização da sociedade de que a pessoas com deficiência gozam, aos olhos do Estado, dos mesmos direito e deveres que as pessoas ditas normais.
Salomão, que perdeu a visão aos três anos devido a um problema causado pela catarata, sonha tirar o curso de literatura e de Ciências Políticas.
CRIANÇAS DEFICIENTES VISUAIS SÃO ESQUECIDAS PELOS PARENTES NOS LARES DE ACOLHIMENTO
Já no lar de Bissau, no alto Bandim, uma residência particular alugada com condições mais razoáveis em comparação com o de Bissaquel, os relatos indicam que as crianças deficientes visuais são esquecidas pelos parentes nos lares de acolhimento. Soube o semanário que a renda desta casa é de um milhão e quinhentos mil francos CFA.
O lar de Bissau acolhe 49 crianças (meninas e meninos). Os quartos são divididos e partilhados, separados de acordo com sexo e idade, que varia de seis a 23 anos e conta com três universitárias.
Todos estes lares são administrados por Nicole Meya´a Bekono, uma Camaronesa que vive há mais de vinte anos na Guiné-Bissau e trabalha há três anos com AGRICE. Ela é a responsável pela distribuição dos alimentos e outros bens essenciais para os acolhidos da AGRICE.

Durante a nossa visita ao lar de Bissau, a equipa do semanário O Democrata encontrou no terreno elementos das missões religiosas que trabalham na vertente da arte de criação com as crianças aos domingos, ensinando-as a criarem algumas imagens com materiais reciclados.
A mamã Nicole, como é carinhosamente chamada pelas crianças, disse-nos durante a entrevista que enfrentam grandes dificuldades, essencialmente a falta de alimentação e de transporte para fazer com que as crianças possam deslocar-se às escolas.
“Tínhamos dois carros, mas agora só um trabalha. Aqui temos 49 acolhidos, entre eles, apenas um surdo os restantes são cegos”, afirmou.
A mamã Nicole explicou que a rotina diária das crianças, que devido às suas limitações, são obrigadas a levantarem-se às 04 horas da manhã para poder apanhar o carro às 07 e chegar à escola às 08 horas da manhã.
De acordo com a Nicole, o lar conta com dois elementos de limpeza, uma cozinheira e uma ajudante para dar banho às crianças.
Contou que algumas dessas crianças acolhidas recebem visitas mensais, trimestrais ou anuais dos pais ou parentes, mas algumas são completamente esquecidas. Disse que o lar não estabeleceu dias para visitas, porque “o lar está sempre aberto para as visitas, prestar apoios e receber ajudas”.
O lar tem um único espaço para guardar todas as roupas e outros bens particulares e raramente recebem apoio do governo guineense.
“As roupas são doadas e é difícil fazer uma conta exata das despesas, porque os gastos variam de acordo com o que temos, porque também temos crianças na escola “Bengala Branca” portadoras de deficiência, mas que vivem com os parentes”, esclareceu, adiantando que nos últimos tempos no lar de Bissau consomem 15 quilos de arroz diariamente.
REJEIÇÃO E ESTIGMATIZAÇÃO DOS CEGOS NA FAMÍLIA OBRIGA AGRICE A ACOLHÊ-LOS VOLUNTARIAMENTE

Em entrevista ao semanário O Democrata, o presidente interino AGRICE, Pedro Cabral, disse que de rejeição e a estigmatização começa na própria família dos cegos, o que deixa a sua organização sem escolhas e acaba por atender as solicitações de acolhimento, mesmo sem ter condições, sem meios financeiros e infraestruturais necessários para fazê-lo.
“Essas práticas de rejeição e de estigmatização de deficientes na família acaba por alastrar e barrar a integração das pessoas com deficiência na sociedade”, indicou, para de seguida frisar que a organização fundada em 1996 com o objetivo de promover a educação, o enquadramento dos cegos na sociedade guineense tem três lares, em Bissau, em Biombo e em Gabú. Dados estatísticos indicam que a AGRICE tem um total de 110 internados e é responsável pela alimentação, saúde, educação, residência, vestuário de todos os internados.
“A AGRECE é o suporte dessas pessoas que são rejeitadas pela sociedade”, precisou e disse que, apesar de apoios da Cooperação Portuguesa em diferente aspetos, a sua organização tem-se deparado e continua a deparar-se com as mesmas dificuldades para manter as pessoas acolhidas, uma vez que não possui nenhuma atividade geradora de rendimento.
“A cada dia que passa cresce o número de solicitações de acolhimento. A nossa organização não pode virar as costas às pessoas que as famílias e a sociedade abandonaram”, afirmou.
Explicou que no mínimo garantem três refeições, mas que acabam acarretar grandes custos devido à subida de preço de produtos de primeira necessidade.
“Várias vezes promovemos conferências de imprensa no sentido de despertar a atenção da política governativa face a esta camada vulnerável e discriminada, mas os resultados são os mesmos”, lamentou, revelando que o armazém o lar não tem nenhum stock de alimentação, porque diariamente gastamos nos lares aproximadamente 50.000 francos CFA em refeições.
“Requisitamos 25 litros de óleo para os três lares, mas no mercado o preço do óleo subiu para 30.000 francos CFA. Infelizmente, não temos a capacidade para satisfazer minimamente aqueles que acolhemos”, lamentou.
Relativamente ao ensino de integração, explicou que há um despacho feito pelo então ministério da Educação Nacional que isenta os pagamentos de propinas escolares às pessoas deficientes em todos estabelecimentos escolares e de formação públicos, mas o despacho nem sempre é cumprido pelas escolas.
Explicou que graças ao bom senso entre a sua organização e mais escolas, os seus membros beneficiam do ensino inclusivo em alguns liceus e universidades da capital. A nível dos liceus, destacou o Liceu 23 de janeiro, bloco I, em QG, e o liceu Samora Moisés Machel. Nas escolas de formação, Tchico Té, Universidade Lusófona, Jean Piaget, Colinas de Boé e a Universidade Amílcar Cabral.
“Temos bolsas de estudo na Universidade Lusófona da Guiné (ULG). Pagamos apenas 25 por cento das propinas, na Piaget é totalmente gratuito, na Colinas de Boé beneficiamos de uma bolsa, Tchico Té três. Na Universidade Amílcar Cabral, universidade pública, pagamos o valor total das propinas”, disse.
Facto que, para Pedro Cabral, demonstra o fraco comprometimento sério do governo relativamente ao ensino inclusivo. Porque, segundo disse, há pessoas deficientes nas regiões que não estão a beneficiar do ensino inclusivo, porque esta modalidade não funciona nas regiões.
Revelou que devido a esses pagamentos, muitos dos associados abandonaram, porque a AGRICE não tem condições para sustentá-los e ao mesmo tempo pagar a escola e a sua formação.
Segundo Pedro Cabral, a sua organização tem um total de cerca de 15 universitários e um número considerável de formados. O sexo masculino constitui o maior número.
Para Pedro Cabral, uma das preocupações da AGRICE é garantir o mercado de trabalho aos seus membros, não ficar apenas na componente de formação.
Relativamente à escola “Bengala Branca”, explicou que é uma escola pioneira na matéria do ensino especial, que funciona desde jardim até ao nono ano de escolaridade. Acolhe tanto as crianças normais, as cegas e pessoas com as outras tipologias de deficiência.
“O método do ensino e aprendizagem é comum e os alunos especiais têm um método específico de adquirir os conteúdos através da escrita braille, através do tacto”, esclareceu.
De acordo com os dados estatísticos do recenseamento de 1990 o número de deficientes era de 7.807 (sete mil e oitocentos e sete).
Perante estes fatos, Pedro Cabral sublinhou que um dos desafios da AGRICE é construir um lar de raiz, porque o lar de Bissaquel é uma espécie de oficina artesanal, mas como “não temos meios para construir um lar de raiz foi adaptada para residência e a funcionar como lar”.
“Precisamos de um lar construído de raiz porque vai permitir a organização acolher maior número de crianças e deixá-las mais confortáveis, de acordo com as suas necessidades e limitações. A casa onde funciona o lar de Bissau não é adaptável, porque é um prédio e oferece riscos a uma pessoa invisual “denunciou, revelando que organização conseguiu comprar dez talhões para a construção de um o lar em Bissaquel.
Pedro Cabral, de 34 anos de idade, preside interinamente a AGRICE desde junho de 2020, indicado numa assembleia extraordinária após a morte de uns dos criadores do projecto AGRICE, o Prémio Nobel da Educação de Criança, Manuel Lopes Rodrigues.
Pedro Cabral, que ficou cego aos 21 anos de idade e convive com esta deficiência já há 13 anos, considerou ser “muito difícil” e desconfortável para uma pessoa deficiente, porque é frustrante e além do mais é obrigada a enfrentar a rejeição social.
Disse que no início não foi fácil aceitar a sua situação, depois do seu regresso de Portugal, inscrever-se na “Bengala Branca”, mas com o apoio dos familiares acabou por estar mais forte psicologicamente, ganhou mais ânimo e começou a acreditar que não era inútil, o que o levou a inscrever-se em 2011 na “ Bengala Branca”.
Revelou ter aprendido a escrita braille na Bengala Branca e com o apoio do então presidente da AGRICE, Emanuel Lopes Rodrigues, conseguiu voltar ao liceu Samora Moisés Machel, onde tinha estudado até 8º ano, antes da cegueira, para concluir o 12º ano.
Pedro Cabral é licenciado em sociologia pela Universidade Lusófona da Guiné 2019/2020 e pretende tirar o mestrado em psicologia oufilosofia.
“Eu acreditava que eu não tinha nascido com deficiência e não ia conviver com ela. Mas agora sinto-me mais realizado com deficiência e, se o meu bom Deus me perguntasse se gostaria de ter de volta a minha visão, eu escolheria conviver com a cegueira”, afirmou.
Para o atual rosto da AGRICE, é sempre bom ter pessoas que contrariam o entendimento da sociedade face aos deficientes e comprometem-se a trabalhar para a consciencialização da sociedade.
De acordo com as estatísticas avançadas, o sexo masculino constitui o maior número na integração mas Pedro Cabral disse que esta diferença deve-se a questões socioculturais e familiares que colocam barreiras às meninas.
Sublinhou que apesar das mudanças e a afirmação de pessoas com deficiências na sociedade, o nível da integração e aceitação social ainda não é o desejável, porque ” não são tidas como prioritários na política governativa, só por terem limitações”.
Lamentou que no passado, pessoas com limitações, particularmente com cegueira tenham sido tratadas como inúteis, as suas refeições eram lhes dadas como animais de estimação e eram excluídas da convivência da família, da comunidade e da sociedade por serem consideradas inúteis.
“Os cegos eram tratados com feiticeiros, se tentassem resistir e mostrar que eram capazes de fazer algo como pessoas normais”, recordou e disse que esta tendência tem mudado com a presença da AGRICE a partir de 1996, a firmeza do Emanuel Rodrigues e a instituição da escola Bengala Branca, em 2003.
“Era tabu ou coisa de outro mundo, uma pessoa com deficiência namorar ou formar família, mas agora é possível, graças à componente sociocultural”, referiu, defendendo que as pessoas têm que aceitar o pluralismo e as pessoas como elas são.
“Nós já provamos a sociedade o nosso valor e a nossa utilidade como qualquer outra pessoa. Apenas temos limitações. Mas já perfilamos em diferentes campos sociais, culturais e políticos “, enfatizou.
Por: Epifânia Mendonça
Foto: Marcelo Na Ritche