
O aumento, a “velocidade de cruzeiro”, do número de casos de violência doméstica contra mulheres e raparigas na Guiné-Bissau suscita um debate nacional. Os ativistas defendem a aplicação da lei que criminaliza a prática e a definição de um modelo educativo nacionais para promover a cidadania e que permita uma coabitação pacífica e harmoniosa. Muitos apontam a pobreza, a cultura, a educação desequilibrada entre meninos e meninas, entre outros, como principais elementos que têm contribuído para o aumento de casos de violência.
De acordo com os dados da Organização Não Governamental – Rede Nacional de Luta Contra Violência Baseada no Género e Crianças na Guiné-Bissau, mais de três mil meninas e mulheres guineenses conhecem e já experimentaram o sabor amargo de diversos tipos de violências. Perante estes factos, algumas organizações e ativistas defendem uma reorientação da educação de base no seio das famílias guineenses que permita que todos gozem de iguais direitos.
RENLUV DEFENDE APLICAÇÃO SEVERA DA LEI E CRITICA MOROSIDADE DA JUSTIÇA

A Rede Nacional de Luta Contra a Violência Baseada no Género e Crianças na Guiné-Bissau (RENLUV-GC/GB) defendeu que é fundamental a aplicação da lei contra a violência doméstica, mas também critica a morosidade da justiça e diz que muitas vezes essa lentidão favorece a impunidade dos agressores.
A presidente da organização não governamental que trava a luta contra a violência doméstica, Aissatu Camará Injai, explicou que a agressão contra as mulheres começa na educação de base, onde os meninos e as meninas são educados de forma diferente e que essa forma de educação tem tido reflexos na vida adulta das pessoas, em que os homens se sentem superiores que as mulheres.
Perante estes fatos, Injai disse que é importante apostar mais na sensibilização para a mudança de comportamentos. Contudo, admitiu que é difícil encontrar resultados imediatos, mas destacou que é preciso ser persistente com ações de sensibilização, avaliações e seguimento sempre que necessário.
“Os casos que ocorreram nas últimas semanas devem servir para chamar a atenção da sociedade e alertar as autoridades judiciais no sentido de se engajarem para que a justiça aconteça”, disse.
“Quando tomamos conhecimento do caso, o agressor já estava na alçada da justiça, mas o que exigimos é justiça efectiva, porque muitas vezes os agressores são libertados sem pagar sequer nada, mas queremos que desta vez seja diferente”, exortou.
Camará Injai explicou ainda que a violência proíbe a participação das mulheres no processo de desenvolvimento do país, “porque limita a participação das mulheres nas atividades em que os homens estão inseridos. Os homens acabam por tomar domínio de tudo e do uso de palavra e falam por elas”.
Injai frisou que o assunto precisa ser combatido porque as mulheres são seres humanos tal como os homens e merecem todo o respeito.
“É preciso continuar a apostar na sensibilização a todo o nível. Por outro lado, a aplicação e a disseminação da lei contra a violência doméstica devem ser atos contínuos”, insistiu, afirmando que toda essa violência atrasa o processo de desenvolvimento de um país.
“Vimos que quando uma criança é submetida a casamento precoce, ela perde a oportunidade de estudar e contribuir para o desenvolvimento. Há maridos que não deixam que suas mulheres façam outras atividades, que não sejam exclusivamente trabalhos domésticos”, precisou.
“Relativamente à mulher que foi queimada pelo marido, quando tomamos conhecimento do caso, entramos em contato com os nossos pontos focais em Bafatá e foram verificar a veracidade dos factos e confirmaram-nos que sim, infelizmente! Quando ela foi transferida para Bissau, continuamos a monitorar o caso e a fazer diligências junto das outras organizações que trabalham nesta temática. Não conseguimos falar com o médico sobre o estado de saúde, porque disse que era prematuro falar do estado clínico da vítima e que iria continuar a acompanhar a evolução da situação pelo menos, nas 42 horas seguintes”, lembrou.
A presidente da RENLUV disse que a sua organização se juntou às outras organizações que trabalham nesta temática para formar uma frente comum e trabalhar para que haja justiça, não só pelos casos recentes como também por todos os casos de violências que tem estado a acontecer no país.
Sobre os dados da violência doméstica, Injai contou que a maioria dos casos não são denunciados, sobretudo aqueles do seio familiar, porque julgam que devem ser resolvidos na família. Revelou que a última atualização que a RENLUV fez em 2018 mostrou que uma média de 8 a 15 casos de violência contra as mulheres são denunciados por dia.
“No estudo que fizemos sobre a tipologia de violência contra as mulheres perguntamos a uma mulher se o marido dela alguma vez a tinha batido, ela achou engraçado e respondeu que o marido tinha o direito de bater nela, se fizesse algo de errado. Ou seja, as mulheres acham normal serem batidas pelos maridos porque a cultura guineense ensinou-as dessa forma, que as mulheres devem ser submissas e deixar que os homens batam nelas quando acharem que devem corrigi-las, ao invés de usar o diálogo”, contou.
INSTITUTO DA MULHER DIZ BASTA A VIOLÊNCIA E ESTRANHA A NÃO APLICAÇÃO DA LEI

O Instituto da Mulher e Criança (IMC) reconheceu que os casos de violência têm estado a crescer na Guiné-Bissau, tendo justificado que se deve à falta de aplicação da lei, o que faz os agressores sentirem-se seguros, em como que nada vai acontecer.
A presidente da IMC, Khady Florence, disse não compreender porque os números têm estado a crescer mesmo com a existência de uma lei que criminaliza a prática no país.
“Tudo isto está a acontecer talvez porque algo não esteja a funcionar bem. A lei não está a ser posta em prática. A lei existe, mas as pessoas não fazem o uso dela. Daí que questionamos o que fazem as pessoas da lei com as leis que não usam?” ”, questionou.
Khady Florence defendeu a revisão da lei em causa, porque “depois de pena nada está tipificado como compensação às vítimas”.
A presidente do Instituto da Mulher e Criança ameaçou desencadear ações de protesto conjuntas com outras organizações que trabalham no domínio da defesa das mulheres e crianças.
“O IMC já se reuniu com as outras organizações do mesmo caráter para fazer uma marcha com o objetivo de alertar e despertar a consciência das pessoas sobre a violação dos direitos das mulheres”, afirmou.
Khady Florence chamou atenção para a necessidade de as mulheres se juntarem à organização e numa voz única exigir a aplicação da lei que defende as mulheres dos abusos e de todas as outras formas de violência.
Admitiu que existe um conjunto de problemas contra as mulheres guineenses, mas frisou que é momento de dizer “basta” e alertar a sociedade para que entenda que isso não é um caso isolado, porque “existe forte probabilidade de amanhã ser na pele de outra mulher”. Neste sentido, defendeu que a educação do berço deve mudar na Guiné-Bissau para que os meninos e as meninas sejam educados da mesma forma sem diferenças.
A presidente do IMC afirmou que a violência tem impacto negativo na vida das mulheres, porque destrói a mulher, física e psicologicamente, sobretudo no tecido social e no lar, onde uma criança pode crescer vendo a violência dos pais, consequentemente, suscetível de tornar-se num adulto violento.
Khady Florence disse que toda essa onda de violência gera, nas defensoras dos direitos das mulheres, um sentimento de revolta, tendo explicado que não é de hoje que estão a fazer campanha e a realizar ações de sensibilização sobre a violência doméstica contra as mulheres e crianças.
Perante estes fatos, sublinhou que é preciso semear a cultura de paz e que cada cidadão guineense faça desta causa, a sua.
“É preciso lutar para tornar o nosso país, um país de paz, porque a violência gera também a instabilidade”, avisou.
“Eu estava no exterior quando aconteceram esses casos, mas os nossos técnicos acompanharam e tomaram diligências. Quando chegaram ao hospital constataram que a mulher tinha queimaduras de alto grau nas costas, e não estava a receber tratamentos médicos devidamente. A partir daí tomamos diligências junto da Administração do hospital e da ONG AIDA para que ela pudesse receber a assistência médica e medicamentosa requerida para o caso”, contou.
No que tange à assistência às vítimas, Khady Florence disse que no quadro das parcerias que o IMC tem com os seus parceiros têm dado assistência médica e medicamentosa às vítimas que recorrem ao IMC ou quando o IMC toma conhecimento de um caso.
“Mas isso vai depender de cada caso, da idade, se são ou não escolarizadas, para que o Instituto possa acionar diligências, porque também dependemos muito da direção da Solidariedade, do Ministério da Família e Solidariedade Social, que tutela o IMC.
“EDUCAÇÃO E JUSTIÇA PRECISAM SER PROMOVIDAS PARA PROPORCIONAR CONVIVÊNCIA EQUILIBRADA” – SOCIÓLOGO
Confrontado com os dados de casos de violência ocorridos nas duas últimas semanas na Guiné-Bissau, o sociólogo guineense, Diamantino Domingos Lopes, defendeu que é preciso reorientar o modelo educativo guineense para promover a cidadania que possa favorecer uma coabitação pacífica e harmoniosa no seio familiar.
Na entrevista ao jornal O Democrata, Lopes referiu que há dois aspetos fundamentais, o consenso e a coerção, que devem ser tidos em consideração para que os direitos das mulheres não continuem a ser uma “simples miragem”.
“O consenso, porque é preciso educar as pessoas, reorientar o modelo educativo guineense para promover a cidadania que permita ter uma coabitação pacífica e harmoniosa”, defendeu.
Neste sentido, reforçou que os dois aspetos necessitam ser enquadrados no currículo escolar, defendendo, contudo, a necessidade de a família assumir a sua responsabilidade, porque “a própria família tem uma quota parte de responsabilidade de educar as meninas e os meninos numa perspetiva de equidade”.
“A educação para cidadania voltada à promoção de uma convivência harmoniosa pode ajudar a solucionar esses tipos de situação”, apontou.
Domingos Lopes defendeu igualmente que a coerção deve ser tema forte nesse debate para moldar os comportamentos da sociedade, porque quem comete um crime ou viola os padrões normativos precisa ser corrigido conforme a lei.
“A educação e a justiça precisam ser promovidas numa perspetiva que possa proporcionar uma convivência equilibrada na sociedade”, reforçou.
Segundo o sociólogo, a educação de base guineense treina a sociedade em como o homem tem o papel de abastecer e garantir o sustento da família, ou seja, o homem é o responsável principal da família, o que na sua visão “é uma lógica educativa da sociedade guineense que está vedada na cultura”.
“Quando uma mulher se destaca mais do que um homem, a sociedade julga e sacrifica o homem com abordagens pejorativas, não elogiando a mulher, mas criticando o homem com abordagens como: porque é que está a permitir isso? Vais deixar que uma mulher te vença? Uma mulher está a dominar-te?”, explicou.
Na sua abordagem, Lopes afirmou que a sociedade não soube lidar com tudo isso porque não é e nunca foi a orientação educativa cultural, para de seguida sublinhar que um homem educado nesta perspectiva, se não souber autoeducar-se, autoafastar-se das outras realidades boas e romper com essas dificuldades, vai permanecer com esse comportamento, porque “a educação materna é machista”.
O sociólogo disse que apesar de existir uma lei que criminaliza a violência contra as mulheres, a impunidade no sistema judicial continua a ser um dos estrangulamentos à evolução da sociedade guineense.
O também docente universitário referiu que é preciso que a justiça funcione porque, havendo impunidade, a tendência é de a violência aumentar. Chamou atenção que não basta fazer a lei, mas é fundamental fazê-la valer na prática.
Lopes frisou que a violência na vida das mulheres reflete-se de várias formas, nomeadamente no sentimento de medo constante, relacionado com efeitos psicológicos e emocionais, que não permite um desenvolvimento normal da competência da mulher.
“Sendo um problema social, eu como sociólogo, estou a acompanhar com muita atenção e preocupação porque são um conjunto de acontecimentos que não se limitam apenas a um ato violento, de tortura física, mas que culminaram em morte das vítimas”, disse.
Para Diamantino Domingos Lopes, quando tudo isso acontece de forma reincidente, não pode deixar de ser uma preocupação por várias razões: sentimento de violência, ausência de piedade e harmonia. Realçou que tudo isso parece se tornar em algo normal, ou seja, está a ser aceite pela sociedade e a família.
Em reação à recaptura de Gilberto da Silva, suspeito de matar a própria filha, a mãe da vítima pediu justiça e disse que vai ao julgamento dizer que o suspeito não merece perdão e que deve ser condenado e morrer na prisão, para aliviar os ânimos exaltados da sua família.
Segundo relatou ao repórter de O Democrata, o desentendimento entre ela e Gilberto terá começado em 2011, quando a vítima (filha) tinha apenas cinco anos de idade.
“Acusou-me de abandonar a minha filha e prestar mais atenção às minhas colegas. Foi a partir daí que decidiu expulsar-me da casa da sua mãe onde estávamos juntos. Só fiz as malas depois de a sua mãe ter regressado de uma viagem ao interior do país. A partir daquele momento, passei a viver no bairro de Bandim (Zona 7), em casa familiar”, contou e acrescentando que desde então Gilberto da Silva tem impedido que a filha fosse visitá-la ou ficar com ela ainda que por apenas uns dias, mesmo nos fins-de-semana ou nas férias.
Mima Cá disse que o suspeito na morte da própria filha já não pagava propinas da escola da filha e acusava-a de ser bandida, pelo fato desta, em algumas circunstâncias, pintar os cabelos.
“Ele já estava fora da minha vida e da filha. Já tive outro companheiro antes do acontecimento trágico que vitimou a minha filha”, lamentou.
Questionada sobre o estado de relação de Gilberto da Silva com a vítima, Mima Cá confessou que eles se davam bem, a filha até cobrou dois meses de renda de um dos anexos construídos pelo pai no bairro de Bandim (Zona 5), e as coisas complicaram-se depois.
“Nunca Gilberto me explicou algo que justificasse essa sua atitude. Como disse, já não nos dávamos bem, ele, eu e a minha filha”, precisou sem avançar detalhes.
O Democrata soube junto das organizações que protejam as crianças e as mulheres que entre 2019 a esta parte registou-se 41 casos da violência doméstica, dos quais apenas oito (08) foram julgados.
Contatado para analisar a situação da morosidade da justiça queixada por ativistas que pedem aplicação da lei que pune a violência domestica, o jurista Françoal Dias disse que os dados apresentados pelas organizações que lutam em defesa dos direitos das mulheres e crianças revelam que o país tem uma sociedade desestruturada e que corre uma série de perigos.
“As boas práticas devem ser cultivadas dentro da família, mas quando a violência doméstica começa a ganhar proporções alarmantes nela é porque temos uma sociedade de riscos”, disse, para de seguida apontar que o governo tem que trabalhar na implementação de políticas públicas ligadas à família, à educação, ao emprego, a orientação social para criar uma base para uma convivência pacífica.
Françoal Dias frisou que o governo deve acionar mecanismos para saber por que razão esses casos não foram julgados e quais são as dificuldades que existem em articulação com o poder judicial.
O jurista defendeu que é preciso a criação de um código da ética para disseminar boas práticas, incentivos às famílias e proteção do governo aos mais fracos. Apontou como uma das soluções a responsabilização de Gilberto da Silva pelo crime cometido para que possa corrigir as falhas e não pedir que morra na prisão.
“Mas quando é a própria família que vem a público pedir que seja condenado à prisão perpétua, embora não exista na Guiné-Bissau, é porque estamos perante uma desestruturação evidente no seio dessa família, que pelos vistos não está a contar com o suspeito. Para o jurista, o justo seria pedir que cumprisse a sua pena e voltasse à família um homem ressocializado”, salientou,
Segundo Françoal Dias, Gilberto da Silva poderá, se for julgado, ser condenado de 8 a 18 anos de prisão, por ser um “crime de homicídio premeditado com alto grau de censurabilidade”.
Por: Djamila da Silva/Filomeno Sambú