ATIVISTAS AMEAÇADOS DE MORTE AFIRMAM QUE BISSORÃ É “SANTUÁRIO” DE CRIME E DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

O vice-presidente da Liga Guineense dos Direitos Humanos da região de Oio, Júlio Ribeiro Djatá, revelou a O Democrata que o índice de violência doméstica, de violação dos direitos humanos e de criminalidade no setor de Bissorã, norte do país, contínua “intacto”, tendo acrescentado que o setor é tradicionalmente conhecido como zona com maior índice de violação dos direitos humanos e de criminalidade a nível da Guiné-Bissau.

O ativista disse que, apesar de o número da criminalidade e de violação dos direitos humanos se situar numa escala maior e preocupante, a Liga tem tentado em algumas circunstâncias resolver alguns casos. Denunciou que correm sérios riscos de vida, porque são “constantemente ameaçados”.

NO PERÍODO DA PANDEMIA REGISTARAM-SE CERCA DE 20 CASOS DE AGRESSÕES CONTRA MULHERES

Júlio Ribeiro Djatá fez essa revelação numa entrevista [maio de 2022] exclusiva ao semanário O Democrata, para falar da situação dos direitos humanos na região de Oio, em particular do setor de Bissorã, que nos últimos tempos tem sido considerado o “centro de criminalidade” da região, devido ao número de casos de violação dos direitos humanos e de criminalidade registados anualmente naquela zona.

Júlio Ribeiro Djatá disse que a Liga Guineense dos Direitos Humanos trabalha em colaboração com outras organizações da sociedade civil, sobretudo quando são feitas denúncias, procura as vítimas para resgatá-las e encaminhá-las para as entidades competentes em matéria de resolução de conflitos, neste caso, a Polícia da Ordem Pública local (POP) e o Centro de Acesso à Justiça (CAJ).

O responsável informou que durante a vigência da pandemia da Covid-19, o setor de Bissorã registou 18 casos de agressões físicas contra mulheres e crianças e outros de tipos de agressões, tendo-os encaminhado para as entidades competentes, como também conseguiu mediar algumas situações no local, sem recorrer à polícia.

“No início do mês de abril deste ano, aconteceu uma cena incrível e inaceitável na tabanca de Brufa, em que um homem matou a tiro duas pessoas durante uma celebração tradicional de Toka-Tchur. O suspeito estava a atirar para o ar com uma arma de fabrico tradicional. Tudo aconteceu quando se preparavam para sacrificar animais. Ele quis disparar para o ar, mas a arma pareceu ter encravado e quando tentou atirar de novo acertou mortalmente um homem e uma mulher que estavam perto dele”, contou Ribeiro Djatá.

Segundo o ativista da Liga, familiares das vítimas tentaram linchar o atirador, mas não conseguiram e foram sequestrar o pai dele para se vingarem, só não conseguiram concretizar a intenção porque a população interveio e o pai foi resgatado com vida.

Em tom de revolta, Júlio Ribeiro Djatá disse que o setor que Bissorã ” produz sempre maus acontecimentos”, porque “foi nesse setor que uma mulher foi violada até à morte e deitada na rua”.

O vice-presidente da LGDH da região de Oio denunciou que recentemente, uma mulher foi encontrada morta e nua numa bolanha, sem um dos seus braços.

“CASOS DE CRIMES ESTÃO AMONTOADOS NO TRIBUNAL, DEVIDO A MOROSIDADE DA JUSTIÇA”

“Em 2021 outra  mulher foi encontrada morta dentro de um fontanário. Ou seja, temos casos de criminalidade que assim de cabeça, dificilmente poderei listá-los todos”, disse.

O Tribunal Provincial que funcionava em Bissorã foi desmembrado há um ano e instalado no setor de Mansoa e neste momento o tribunal local só atende casos da região de Cacheu.

Questionado sobre a agilidade da justiça, Júlio Djatá frisou que a disfuncionalidade da justiça e dos tribunais tem contribuído para a impunidade no país e fez com que os crimes continuem a aumentar cada vez mais em Bissorã, porque “todos os casos que dão entrada na justiça são resolvidos na esquadra policial que não tem vocação para tal”.

Sublinhou que a esquadra da polícia de Bissorã, quando lhe é comunicado uma ocorrência de violência nas tabancas, alega que não dispõe de meios para se deslocar ao terreno.

“A missão da polícia é manter a ordem e garantir a segurança à sociedade, mas os polícias que temos em Bissorã têm atuado, na maioria das vezes, apenas na cidade de Bissorã e as tabancas ficam à mercê da sua sorte, o que tem feito crescer bastante os casos de agressões físicas. Portanto Bissorã é uma dor de cabeça!”, frisou.    

O ativista lembrou que o tribunal que funcionava na cidade de Bissorã a nível da província foi desmembrado e ficou apenas a parte de Cacheu e a outra que pertence à região de Oio está em Mansoa e quando acontece um caso é remetido para Mansoa. Acontece que, devido à distância e à falta de meios financeiros, muitas pessoas acabam por desistir, de maneira que a “impunidade está a aumentar cada vez mais em Bissorã”.

Júlio Djatá alertou que numa sociedade em que culpados e criminosos não são julgados nem condenados, a probabilidade é de casos de violência e crime aumentarem, porque as pessoas que praticam esses atos sentem-se livres.

De acordo com o vice-presidente  da Liga, se os criminosos fossem responsabilizados pelos atos que cometem, estando o setor de Bissorã a ser apontado como zona problemática e de risco, talvez a situação melhorasse bastante a esta altura.

“Infelizmente, os criminosos saem impunes e os casos de crimes estão amontoados no tribunal, devido a morosidade da justiça”, lamentou, defendendo que Bissorã precisa de um tribunal interventivo para a resolução de casos de criminalidade e violência que se vive naquele setor há vários para responsabilizar todos os agressores.

“Precisamos também  de uma esquadra policial interventiva e dotada de meios logísticos e recursos humanos à altura para garantir  segurança, tanto na cidade de Bissorã como nas tabancas, porque a criminalidade que acontece aqui a cada ano é um autêntico filme, de maneira que é preciso uma atuação robusta das forças policiais para desencorajar ondas de violência, sobretudo contra as mulheres”, advertiu.

Júlio Ribeiro Djatá sublinhou que após vários trabalhos de sensibilização sobre direitos humanos que a organização realizou na região de Oio, a Liga decidiu trabalhar em rede com a Rede Nacional de Luta Contra a violência Baseada no Género e Criança (RENLUV) e outras organizações da sociedade civil, que atuam em matéria de direitos humanos e violência para melhor encarar a situação difícil que se vive no norte do país.

“Mesmo com essa rede, recebemos ameaças todos os dias, ameaças de pais das crianças que fogem do casamento forçado e precoce, na tentativa de mediar pequenos conflitos nas tabancas, mas não vamos desistir porque é a área que escolhemos para trabalhar”, disse para de seguida afirmar que a questão de direitos humanos deve ser salvaguarda e cada cidadão deve viver de acordo com os direitos e deveres que a lei lhes confere.

RENLUV REVELA AUMENTO DE CASAMENTOS FORÇADOS E PRECOCE EM BISSORÃ

Interpelado pelo repórter de O Democrata que esteve na cidade de Bissorã a medir pulso das organizações da sociedade civil sobre os direitos humanos, a Coordenadora setorial da Rede Nacional de Luta Contra a violência Baseada no Género e Criança (RENLUV), Eusébia Malaca disse que nos últimos tempos, o número de casamentos forçados e precoce tem aumentado muito.

Relatou que na suas tentativas de intervenção para pôr cobro a esses fenómenos, enquanto defensores dos direitos humanos, acabam por ser ameaçados, principalmente pelos pais das raparigas que são submetidas a casamentos forçados precoces.

Eusébia Malaca informou que a cidade de Bissorã não tem centro de acolhimento para receber as meninas que fogem do casamento forçado ou precoce, por isso a sua residência tem funcionado como num centro de acolhimento, mas também serve de lar para cuidar da saúde dessas meninas, submetidas às torturadas por rejeitarem casar com homens mais velhos, e “não tem sido um trabalho fácil”.

Malaca aponta a fraca atuação da justiça como fator de violência no setor de Bissorã, porque existem vários casos no tribunal, mas os processos foram engavetados, sem nenhuma explicação.

A Coordenadora setorial assegurou que todos os casos e denúncias que a organização recebe sobre a violência baseada nas mulheres e crianças e criminalidade são do conhecimento dos agentes policiais de Bissorã, sobretudo as de agressões físicas.

“Temos lutado, e não tem sido fácil conseguir um relatório médico para essas meninas que correm sérios riscos de vida e de segurança, bem como meios financeiros para a sua alimentação e tratamento médico”, narrou.

Eusébia Malaca defendeu o julgamento e condenação das pessoas que cometem violência e atos de crime para poder reduzir “drasticamente” essas práticas no setor de Bissorã, caso contrário, alertou, “o setor continuará na senda de ondas de violência e criminalidade”.

Outro aspeto mencionado pela responsável da RENLUV é a interferência de altas personalidades nos processos de crime nas instâncias judiciais, que acabam por comprometer o trabalho dos agentes policiais e de juízes.

“Quando uma pessoa pratica crime ou violência, deve ser punida de acordo com a lei para não voltar a cometer o mesmo ato no futuro. Por incrível que pareça, os familiares dos suspeitos ou criminosos que desempenham altas funções no Estado fazem pressão de forma a que os seus familiares sejam soltos”, relatou, para de seguida frisar que se as coisas continuarem nesse ritmo, não vai ajudar para que haja uma verdadeira paz no setor de Bissorã, pelo contrário vai complicar tudo e incentivar as pessoas a continuar a praticar crime.

“É preciso deixar cada entidade fazer o seu trabalho, porque só assim é que se pode diminuir os casos de violência em Bissorã. Qualquer pessoa que pratica um ato que não seja bom para a sociedade, deve ser punida de acordo com a lei, independentemente do seu estatuto social ou de quem sejam os seus familiares”, precisou.

Perante estes fatos, apelou ao governo para apoiar as organizações da sociedade civil que trabalham no domínio dos direitos humanos e luta contra a violência baseada nas mulheres e crianças com meios de trabalho e garantir a segurança dos ativistas.

Eusébia Malaca disse que mesmo com as ameaças estão determinados e nunca vão desistir da sua causa, lutar para que os direitos fundamentais das pessoas sejam respeitados, como também exigir para que a justiça seja feita para desencorajar criminosos e violadores de mulheres e crianças.

“Chegou o momento em que a minha casa se transformou num centro de acolhimento de meninas que fogem para evitar casamentos forçados e precoces ou vítimas de agressões físicas. Alguns pais não compreenderam e acusaram-me de estar a incentivar as crianças a não aceitarem o casamento, outros ameaçaram matar-me, mas nunca expulsei ninguém, porque chegam todas aflitas. Vamos continuar a trabalhar em rede para ver se combatemos esses fenómenos em Bissorã”, vincou.          

“ESPANCARAM-ME E TIRARAM-ME O MEU FILHO, PORQUE RECUSEI CASAMENTO FORÇADO” – QUINTA TAG

Quinta Tag, uma das meninas vítima de casamento forçado, confessou a repórter que fugiu da sua tabanca Biambe para ficar na casa da Eusébia Malaca, porque os tios obrigarem-na a terminar namoro com o rapaz que a engravidou para se casar com outro homem de idade avançada e quando rejeitou submeter-se a essa prática foi espancada pela sua própria família.

“Assim que consegui fugir de lá, procurei de imediato proteção na casa da coordenadora setorial da Rede Nacional de Luta Contra a violência Baseada no Género e Criança”, sublinhou.

A menina de 17 anos de idade explicou que depois de um tempo, refugiada na casa de Eusébia Malaca decidiu voltar para a sua tabanca, pensando que os tios já tinham desistido do assunto, mas foi pressionada de novo e resolveu-se fugir para algures, em São Domingos, setor de Cacheu, mas durou pouco até ser encontrada pelos familiares e retiraram-na o seu filho de dois anos de idade.

“Essa situação começou quando engravidei do rapaz com quem estava a namorar. Os meus tios decidiram dar-me em casamento. Rejeitei, bateram-me e fugi para casa da Eusébia Malaca e depois de dar à luz, decidi regressar para a minha tabanca, mas as coisas não deram certo. Tive que fugir de novo para  São Domingos, na tabanca de Djol. Estou aqui para informar que me tiraram o meu filho, não posso voltar para a minha tabanca, porque posso acabar morta ou amaldiçoada”, sublinhou.

Quinta Tag relatou que situações de género aconteceram várias vezes na tabanca de Biambe e arredores a muitas raparigas, pedindo a intervenção do Estado para travar a problemática de casamento forçado ou precoce, para permitir às meninas estudarem e fazer as suas escolhas livremente.

A vítima alertou que se o Estado não intervir o mais rápido possível, as meninas não vão viver tranquilas e sossegadas, devido a essa situação de casamento e violência.

“Os nossos direitos não podem continuar ser violados constantemente no setor de Bissorã e o Estado ficar inativo, sem reagir como se nada estivesse a acontecer, deixando apenas as organizações que trabalham nessa matéria proteger as vítimas, no meio de risco de vida que correm e ameaças de morte que recebem dos nossos próprios familiares. O Estado deve  proteger-nos e punir as pessoas que praticam esses ato”, apelou.   

Por: Aguinaldo Ampa

Foto: A.A   

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