NETOS DE BANDIM CRITICAM AUSÊNCIA DO ESTADO NA CULTURA E DEFENDEM A DEFINIÇÃO DE PRIORIDADES

[ENTREVISTA_julho de 2022] O coordenador do Grupo Cultural Netos de Bandim insurgiu-se contra o Estado e criticou a sua ausência da cultura na Guiné-Bissau e no acompanhamento aos Netos de Bandim e outros grupos culturais, não obstante terem levado o nome do país para os quatro cantos do mundo, incluindo os Estados Unidos da América, Macau, Brasil, Europa e América latina.

Ector Diógenes Cassamá fez essa crítica na entrevista ao Jornal O Democrata sobre a participação do grupo nos festivais internacionais de folclore a decorrerem em Espanha e Portugal e o papel do Estado na cultura.

O grupo participou nos festivais de Burgos,  da Múrcia e  do Portugalete, ambos municípios das províncias da Espanha, anunciaram os dirigentes do grupo que defendem que é preciso definir prioridades para alavancar o setor da cultura.

Na cidade de Múrcia, por exemplo, o grupo recebeu um troféu com o rosto do Palácio Governamental, nome dos Netos de Bandim e da Guiné-Bissau inscritos numa das orlas do troféu.   

Apesar de algum cepticismo e de vivermos num país atípico, Ector Diógenes Cassamá afirmou que a cultura deu passos importantes, visto que existe, pela primeira vez, uma secretaria de Estado criada exclusivamente para o setor da Cultura, uma instituição e um braço do governo para pensar apenas a cultura.

GRAÇAS A PARTICIPAÇÃO DOS NETOS DE BANDIM, MÚRCIA SERÁ ELEITA  CIDADE FOLCLÓRICA

Edson Gomes Ferreira, vice-coordenador do grupo, enfatizou que, com a participação do grupo cultural da Guiné-Bissau no festival, Múrcia será indicada como cidade internacional do festival folclórico.

O vice-coordenador dos Netos de Bandim frisou que o grupo foi convidado para participar nesses festivais, porque está registado numa Comissão Internacional Organizadora de Festivais Folclóricos Mundiais (CIOFF), o que o permitiu participar, tanto nestes como em todos os outros festivais.

Segundo indicou, todos os anos, os Netos de Bandim mandam a sua candidatura a festivais nos quais queira participar. Se aprovada automaticamente participa. Mas durante a vigência da pandemia do novo Coronavírus, o grupo não se candidatou a nenhum dos festivais.

Salientou que neste ano, devido aos feitos deixados nos festivais anteriores, o grupo foi convidado para participar nos três festivais, nomeadamente de Burgos (município da Espanha na Província de Burgos, comunidade autónoma de Castela e Leão), Múrcia (município da província e comunidade autónoma de Múrcia) e Portugalete (nobre vila de Portugalete), município da província da Biscaia, País Basco, Espanha.

Os municípios de Burgos e Segóvia, por exemplo, estão no leque de novos palcos que um dos melhores grupos culturais do país pisou nessa sua digressão à Espanha, que termina a 21 de agosto próximo.

A novidade na participação dos Netos de Bandim nesses festivais, segundo os dirigentes do grupo, vai para a cidade de Múrcia, que tem um festival Internacional Folclórico do Mediterrâneo, mais antigo, cuja edição 54 realizou-se este ano, tendo contado com a participação dos Netos de Bandim.

“É inédito. Aliás, esse assunto foi enfatizado pelo presidente da câmara local. Disse-nos que a nossa participação foi extraordinária. Um grupo limitado, com poucos recursos, comparativamente a outros que apresentaram uma equipa de vinte ou trinta elementos, conseguiu fazer muitas coisas inéditas em palco e cobrir as atuações dos outros.

Participamos apenas com 11 elementos em Múrcia. Outros foram desmembrados para as outras cidades onde o grupo está também a atuar. Em média participaram oito grupos folclóricos no festival de Múrcia ”, afirmou

Edson Gomes Ferreira referiu que a presença dos Netos de Bandim na Espanha está a ser uma oportunidade, um campo amplo, para o grupo divulgar os valores culturais do país e fazer com que a Guiné-Bissau seja conhecida como um país de realizações culturais, não de instabilidades política, económica e social.

“Nem sempre acontece. Chegamos a dominar as capas dos jornais. Estivemos em diretos, nos principais noticiários da imprensa local. Em todas as edições, nunca tiveram uma participação como a do Netos de Bandim. Aliás, isso foi-nos dito várias vezes pelo presidente da câmara, que não se cansou em elogiar a nossa participação e disse que os rapazes são energéticos e produzem muita alegria”, notou.

Na cidade de Burgos, onde o grupo recebeu o troféu personalizado com o rosto do Palácio Governamental da cidade, o nome dos Netos de Bandim e do país, a Guiné-Bissau desafiou a Bolívia, os Estados Unidos e a Polónia.

Na mesma entrevista, Edson Gomes Ferreira anunciou o interesse manifestado por alguns percussionistas da Colômbia em participar em algum festival ou evento cultural na Guiné-Bissau, porque ao longo do intercâmbio que mantiveram, descobriu-se que alguns escravos tirados da Guiné-Bissau e da África formaram a primeira colónia na Colômbia no século XVIII, uma comunidade independente fundada por Domingos Biohó, antes de outros países latinos americanos conseguirem as suas independências.

“Portanto, para além da relação secular efetiva como a Colômbia, descobriram que têm também uma parte da África Negra “, avançou

O grupo vai ter uma média de 60 a 70 apresentações com três grupos, dois na Espanha e um em Portugal no festival de Cantanhede e o destaque vai para o domínio da imprensa, o impacto mediático que o grupo está a ter na sua digressão pela Europa.

Nesta digressão, os Netos de Bandim elegeram como Slogan do grupo “cultura é uma embaixada itinerante” não só para transmitir que a cultura é uma cara que revela o potencial de cada país, como também mostrar ao mundo que a cultura guineense consegue chegar aonde os diplomatas e os políticos não conseguem chegar.

“Felizmente, os Netos de Bandim conseguiram, a nível da europa, erguer o nome da Guiné-Bissau e estar presente em diferentes palcos do mundo com o país às costas.

As suas atuações foram sempre foram assistidas por altas personalidades desses países por onde passou. A cultura faz as pessoas olharem agora para a Guiné-Bissau como um país de potencial cultural, não de conflitos”.

NETOS DE BANDIM ESTÃO A EXECUTAR PROJETO RESISTÊNCIA CULTURAL NA ÉPOCA COLONIAL

Ector Diógenes Cassamá “Negado” criticou a ausência do Estado na cultura guineense e no acompanhamento dos grupos culturais, não obstante terem levado o nome do país para todos os quatro cantos do mundo, incluindo os Estados Unidos da América, Macau, Brasil, Europa e América latina.

“Sempre a trabalhar a imagem da Guiné-Bissau. Em todas as nossas atuações, vem em primeiro a bandeira nacional “, afirmou.

Instado a pronunciar-se sobre a motivação que terá levado outros povos a usarem trajes tradicionais guineense que os Netos de Bandim trajaram nos três festivais, Ector Diógenes disse que no início, nem sempre foi fácil encarar o preto o outro, devido ao preconceito ou visão do outro sobre o negro, mas a partir da primeira participação, o grupo conseguiu mudar esse entendimento do desconhecido, que é visto com desconfiança e conquistou novas amizades e relações.

 “Nos últimos tempos, o grupo tem recebido muitas solicitações de grupos de outros países que querem desfilar com os Netos de Bandim e usar os trajes que usamos, porque conseguimos aos poucos mudar as coisas e mostrar ao mundo que todos somos iguais, não obstante termos diferentes tonalidades da cor da pele. Aliás, porque também ganharam consciência de que usando isso e aproximando-se de nós poderão ganhar mais visibilidade nas suas redes sociais”, indicou.

O coordenador dos Netos de Bandim nega que o grupo tenha priorizado mais atividades internacionais e relegado para segundo plano as internas, porque um dos objetivos dos Netos de Bandim é a internacionalização do grupo e, consequentemente, a cultura guineense na componente de dança, música tradicional, trajes tradicionais, gastronomia guineense, entre outros aspetos.

Negado disse que a nível interno, o grupo sempre está ativo, tendo reconhecido que durante a vigência da pandemia do coronavírus, o grupo não realizou eventos de grandes dimensões, porque também estava metido num projeto “Bande terra sabi” que, se tivesse sido aprovado pela União Europeia, teria uma duração de três anos com a realização de três festivais internos “bande terra sabi” e três festivais internacionais com o mesmo nome, um em Cabo Verde, Praia, em parceria com o grupo teatro Fladu Fla e outro em Portugal, com o grupo Griot, que seria executado no terceiro ano do projeto.

“A candidatura já foi apreciada e passou, mas o projeto não foi aprovado ainda pela União Europeia. Neste momento, os Netos de Bandim estão a executar um projeto sobre a resistência cultural na época colonial com os Netos de Amizade, filial e um grupo parceiro dos Netos, mas é um projeto de natureza investigativa, não cultural”, esclareceu.

Ector Diógenes Cassamá admitiu que o grupo decidiu abster-se de organizar espetáculos próprios porque estava à espera que de um projeto que deveria ser financiado pela UE e no âmbito da organização desse leque de festivais, os Netos de Bandim teria oportunidades de deslocar para o país outros grupos folclóricos internacionais.

“Independentemente de resgatar a forma de manifestar o nosso carnaval e outras manifestações culturais, esses festivais permitiriam que o país divulgasse as nossas manifestações culturais lá fora. A etnia Papel, por exemplo, tinha Kussunde, mas ninguém é capaz de explicar como isso foi desaparecendo. E acreditamos que, com a realização desses festivais, a Guiné-Bissau conseguirá resgatar muita coisa ou géneros da cultura de outras etnias que já desapareceram ou estão em fase de desaparecimento”, assegurou.

Apesar de algum cepticismo e de um país atípico, Ector Diógenes Cassamá afirmou que a cultura deu passos importantes, visto que existe, pela primeira vez, uma secretaria de Estado criada exclusivamente para o setor da Cultura, uma instituição e um braço do governo para pensar apenas a cultura.

Para além da secretaria de Estado da Cultura, Negado destacou também a Carta de Política Nacional, ainda em andamento, que talvez venha a ser um instrumento, “ uma Bíblia” para o desenvolvimento do setor da cultura, porque a “cultura tem sido um parente pobre. O bolo do orçamento disponibilizado para cultura é magro. Talvez com a aprovação dessa carta tudo venha a mudar para positivo, bem como ajudar os atores culturais a encontrarem mecanismos e caminhos de aproximar o Estado deles”, sustentou.

NEGADO DEFENDE DEFINIÇÃO DE PRIORIDADES PARA ALAVANCAR A CULTURA NACIONAL

Questionado sobre o que será preciso fazer para garantir que a cultura nacional não volte a afundar-se, Negado Cassamá defendeu que é preciso definir prioridades e metas porque, “até ao momento a Guiné-Bissau não tem um estilo musical com o qual se identifica”.

“Há um vazio, por isso é urgente definir as prioridades do país e a partir dessas prioridades começar a investir seriamente para constituir um estilo musical próprio. A Guiné-Bissau é um país multiétnico e cada grupo étnico tem diferentes manifestações culturais que podem ser aproveitadas para trazer rendimento económico ao país”, disse.

“Por exemplo, a nível das ilhas, só com as danças de kamponi e Kabaró, podemos mobilizar grande investimento para o Arquipélago dos Bijagós nos setores do turismo, economia, cultura, sem contar com as outras etnias”, precisou.

Ector Diógenes Cassamá admitiu que a Guiné-Bissau sofre de problemas de estruturação da sua cultura e um dos grandes desafios dos Netos de Bandim ao longo dos 22 anos da sua existência tem sido e continuará a ser a visibilidade da cultura guineense e dos trabalhos que o grupo faz.

“Devido às nossas limitações, não temos conseguido ter responsáveis para cada área, por exemplo, Marketing, imagem e comunicação e temos recorrido, em alternativa, às nossas redes sociais para divulgar as nossas atividades e o potencial cultural que o país tem e isso tem permitido ao grupo chegar a vários palcos internacionais”, salientou.

Negado revelou que recentemente, um educador musical brasileiro a quem, desde 2009, o grupo tem solicitado e custeado a sua vinda ao país, esteve no na Guiné-Bissau e ministrou formação no centro cultural Brasil Guiné Bissau, na décima semana da música brasileira.

“Pela primeira vez, este ano, a embaixada do Brasil no país assumiu a cem por cento os custos da semana da música brasileira na Guiné-Bissau e o embaixador teve a amabilidade de presidir a cerimónia da abertura do evento.

Quer dizer que o governo do Brasil assumiu uma iniciativa de Netos de Bandim com o educador musical brasileiro que vinha ao país de forma privada”, assinalou.

“Há ausência do Estado. O Estado não está a acompanhar os percursos dos Netos de Bandim.

Hoje, por exemplo, temos o Ballet Nacional que também é um potencial, mas dentro desse potencial estão lá os frutos dos Netos de Bandim, porque a maior parte dos elementos desse grupo são jovens formados pelos Netos de Bandim, no âmbito de um projeto que realizamos em parceria com ADPP e USSOFORAL. Esse é um dos motivos para o Estado começar a dar atenção ao grupo”, criticou

 Os dois dirigentes dos Netos de Bandim fizeram uma observação positiva dos trabalhos que têm sido desenvolvidos pelos promotores de eventos culturais, porque conseguiram impulsionar eventos culturais num momento em que o país estava quase na estaca zero e conseguiram fazer deslocar-se para o país artistas de renome internacional, contudo, aconselharam-nos a começarem a olhar de forma diferente os valores nacionais.

Neste sentido, lembrou que o grupo Netos de Bandim, em parceria com a ONG italiana Manitese e o Centro Cultural José Carlos Schwarz organizou um festival cultural na cidade de Gabú “Guiné-Bissau I Terra Rico”, mas os organizadores não tiveram nenhuma assistência, tanto do governo central quanto regional.

“Não se pode estar sistematicamente a culpar os promotores dos eventos culturais, por terem convidado mais artistas internacionais ou priorizado músicos de fora. Os nossos cantores e músicos têm de se organizar. A classe está desorganizada e neste momento nenhuma associação de músicos está funcional, capaz de reunir os promotores para definir planos. Temos cantores que já deram provas, que podem subir qualquer palco internacional e fazer o mesmo que os outros fazem cá. É preciso sinergias, um trabalho de mãos dadas entre todos os atores, porque é possível organizar grandes eventos internamente, acumular muito dinheiro sem ter que recorrer a nenhum artista lá fora”, afirmou Negado.

A Guiné-Bissau não organizou nos últimos dois anos o carnaval, a sua maior manifestação cultural, devido às medidas restritivas impostas pelas autoridades na vigência da Covid-19, o que gerou algum mal-estar entre os atores culturais, organizadores de eventos e as autoridades.

Questionado sobre os prejuízos que isso terá causado ao setor, Ector Diógenes Cassamá disse que “não é apenas a cultura que perdeu com a ausência do carnaval, é todo o país, porque move turismo, economia e todos os setores da vida pública”.

“Foram impostas medidas restritivas, incluindo a não realização do carnaval, mas todos os mecanismos e ferramentas usados para sensibilização sobre métodos de prevenção do coronavírus são ferramentas culturais. A cultura é um médico da alma. Todas as informações que foram veiculadas nas campanhas de sensibilização e as formações que foram ministradas para os ativistas tiveram base em ferramentas culturas”, desafiou.

Para o ativista, o carnaval poderia ter servido de meio para passar mensagens positivas sobre métodos de prevenção e de outras formas de cuidados para não propagar o vírus, porque “não adianta autorizar a realização de feiras ou mercados, onde se tem menos controlo da situação, e impedir a realização do carnaval que move muita economia”.

Ector Diógenes Cassamá anunciou que o grupo que coordena tem em manga para 12 de setembro, aniversário dos Netos de Bandim, a realização de uma atividade “ moradia artística” apenas com três grupos étnicos guineenses, palestras que serão ministradas nas línguas desses grupos, gastronomia, trajes e alguns aspetos desses mesmos grupos, bem como deslocar de fora alguns parceiros.

“Internamente, vamos convidar outros movimentos culturais para comemorar os 22 anos dos Netos de Bandim. Temos um centro cultural construído no âmbito do projeto economia criativa que está na sua fase de conclusão, onde, no quadro da festa do grupo, provavelmente vamos realizar um seminário de dança e percussão e depois avançamos para a fase da internacionalização do grupo, sobretudo fazer que os trabalhos do grupo e a nossa cultura cheguem ao nosso bloco sub-regional”, concluiu.

Por: Filomeno Sambú

Foto: Marcelo N´canha Na Ritche

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