Opinião: O SENTIDO DE ELEIÇÕES NA GUINÉ-BISSAU

A Guiné-Bissau é um projeto político de Estado, produzido por um cenário da política internacional complexa. Ao mesmo tempo, a Guiné-Bissau é resultado duma mistura de confluência de povos com origens e proveniências diversas que tornam, a um certo ponto, a difícil convivência. Qualquer anílise sobre a Guiné-Bissau sem se tomar em consideração estas realidades factuais, incorre-se num exercício de observação superficial e desprovido duma grelha analítica sólida.

A compreensão de transfiguração sociocultural da Guiné-Bissau prende-se sobretudo/principalmente com a realização das primeiras eleições multipartidárias em 1994, onde pela primeira vez, a solidariedade étnica foi convocada, não para lutar contra o domínio/jugo colonial, mas para servir agendas políticas e ambições subjetivas.

Uma abertura política (teatro político) que pode ser vista sob prismas diversos (e, a depender do ângulo da observação, há quem diga se tratar duma caixa de pandora…). Uma outra visão e compreensão que se tem desse processo, é do início de um caminhar que levou a um mar de incertezas em relação a aquilo que viria a ser um devir da Guiné-Bissau e, ainda, de um conjunto de processos que levaria a Guiné-Bissau a condição de um Estado imprevisível, de um processo muito louco (Sangreman 2021), por último, limiar das evidências de que o novo Estado não dispunha de recursos humanos suficiente para atender os desafios reais de um Estado, sobretudo de um Estado em construção. Pode-se fazer um conjunto de reflexões e análises sobre como e através de que processo (s) a Guiné-Bissau chegou a patetização da política e degradação social de povo, cujo sonho e aspirações foram traídas. A Guiné-Bissau foi um projeto de Estado muito bem concebido, não perfeito, mas intelectualmente bem conseguido, pela clarividência política e diplomática de Amílcar Cabral. Como disse uma vez alguém – a destruição do projeto do Estado da Guiné-Bissau foi um processo, que de certeza, iniciou-se com a morte de Amílcar Cabral. E eu acrescento ainda – esse processo encontra-se na sua fase mais avançada.

Durante a minha pesquisa para o mestrado e assim como para realização do trabalho em andamento sobre origem da família política guineense, realizei entrevistas, outras sem permissão para gravar, a tentar compreender as raízes duma classe política incapaz e moribunda. Perguntei a alguns dos meus entrevistados se queriam de fato fazer política, ou, se simplesmente estavam na altura da abertura política e decidiram participar por participar. Isto porque, em nenhum momento alguém me falou sobre divergências e interpretação sobre que tratamento dar a economia, que elementos da política e assuntos sociais antagonizava a então classe política, quais eram as visões convergentes e divergentes sobre a agricultura, como olhavam para relação com o Senegal, que aspetos marcaram o debate sobre educação nas primeiras eleições? Era o começo de tudo, sim, mas, que não seja por isso, a verdade é que o país tinha se lançado a um exercício e levado consigo toda ignorância, simbolizada por aquele grupo de amadores da/na política. Fui tentar conhecer estas coisas, para saber, se antes das propostas das instituições do Brettoon Woods, por exemplo, houvesse quem estava interessado em discutir o modelo económico, sistema político, as dinâmicas do mercado, as tendências ideológicas entre direita, esquerda, centro, etc.

Hélder Vaz, por exemplo, que tanto se vangloria de ser um pai da democracia, sempre que retoma, nos seus debates, aquela época, limita-se apenas em dizer- “enfrentei o Nino Vieira, fui detido”- chegou até de dizer que PAIGC era um partido Comunista, algo que me criou uma série de inquietações sobre se tem de fato o domínio conceitual do conceito.

Quem falava num projeto de sociedade? Todos, quase sem exceção, se mergulharam na guerra e luta, uma luta não igual a que terminou com a proclamação do Estado, mas, sim, para ter controlo e acesso aos recursos que a Guiné-Bissau alberga.

Toda esta luta, durante abertura política, foi feita através dos discursos cínico e hipócrita, Amílcar Cabral vai ser introduzido fortemente nos debates- Cabral fala ba, Cabral fala ba (Cabral dizia… Cabral dizia)… também começou a construção duma nova dinâmica política, económica e social que iria reconfigurar fortemente as tendências sociais na Guiné-Bissau. O país decidiu, não por livre opção, aderir a um conjunto de narrativas, para se criar uma maior relação e confiança do capitalismo e da finança internacional, assim se introduziu, de forma legal, o multipartidarismo, para não se dizer propriamente democracia, que pode até significar muitas coisas, menos as que se pratica e se vive na Guiné-Bissau. Carlos Cardoso (1999) escreveu, na obra “Transição Política na Guiné-Bissau”, de que uma abertura política prematura, por simples recomendação do exterior, sem um trabalho de casa, poderia criar situações complicadas e cenários complexos, nomeadamente, tribalismo e sentimentos identitários que não coadunam com os fundamentos e retórica que fundou o Estado- Unidade (unidade na diferença) e Luta (para construir a tal nação africana forjada na luta). Toda previsão acabou por se afirmar, sobretudo em relação à questão étnica, o fenómeno Koumba Yala é quem melhor simboliza esta referência.

Mas, não é esta (Koumba Yala, por exemplo) a principal razão da instabilidade e falta do desenvolvimento da Guiné-Bissau, a quebra do projeto do Estado, a meu ver, em 1980, que se simboliza na figura do Nino Vieira, abriu uma precedência da falta de cultura do Estado e de desprezo total a visão e ambição de Amílcar Cabral. Sob presidência de Nino Vieira, criou-se uma classe empresarial falsa, uma elite económica forjada, para atender as exigências das instituições de Breton Woods.

Desde então, gravitou-se, como coloquei, em volta da figura do Nino Vieira, se formou uma nova elite política, económica e militar. As testemunhas que são os meus pontos de contato, outras até muito ligadas ao Nino Vieira, me deram entender que a falta de confiança nos antigos camaradas de arma e a necessidade de um maior controlo do Estado, levou a que Nino Vieira afastasse muitos dos seus. Para muitos formadores de opinião pública, Nino Vieira deu azo, com a nova roupagem, os chamados “mininus de praça, mininus de tchom de pepel”. Deste modo, permitindo uma guinada total no curso de novo Estado, que a cada instante apresentava uma nova silhueta.

Na sequência, o entourage de Nino Vieira, dividiu-se, entre a ala empresarial, política e militar, mas não com as mesmas caraterísticas após o golpe de 1980, em que toda a estrutura do exército  rendia-se aos poderes de Nino Vieira. Sendo assim, formou-se, com beneplácito de Nino Vieira, uma classe política corrupta, criminosa, incompetente, intriguista e sem compromisso com o Estado. A esse grupo, reservei um capítulo na obra que tenho em mãos – “A Genealogia política e económica do Nino Vieira na Guiné-Bissau”. Esta análise, faz parte de um trabalho que estou a desenvolver como pesquisa, através duma metodologia de pesquisa da tradição sociológica francesa.

Quando se compreender os interesses que se constituíram a volta de Nino Vieira, compreenderá com muita obviedade, que atual classe política, a classe que sempre governou, desde abertura política, quase na sua maioria, constituiu-se política e economicamente nas costas e às custas do Nino Viera, daí que, a disputa que, aparentemente parece ser uma disputa política, no fundo não passa de uma luta para o acesso e controlo dos recursos de que a Guiné-Bissau dispõe, insisto.

Quase todos eles, de alguma forma ou outra, estiveram ligados ao Nino Vieira. José Mário Vaz, por exemplo, foi o seu mandatário na eleição de 1994, houve um ex-Primeiro-Ministro que se constituiu enquanto empresário com apoio e a proteção do Nino Vieira. Consta de que Filinto Barros chegou a tentar exonerá-lo de suas funções e pedir a sua prisão, mas Nino recusou. Cipriano Cassamá, do PAIGC, foi sempre um ninista, o atual Presidente da República serviu de segurança no palácio sob presidência do Nino Vieira, Delfim da Silva dentre várias outras figuras da atual classe política são ninistas. São apenas alguns nomes para não me ocupar agora de um trabalho que desenvolverei com mais fôlego e eficiência.

Daí que, quando se observa como a pobreza é uma realidade na Guiné-Bissau, e como se tem abrumada a cada vez, enquanto que os homens e mulheres do Estado, ministros e ministras estão a se enriquecer, deve se questionar e intrigar, por que razão tem de ser assim? Tem que continuar assim? A população guineense tem consciência de o quanto tem sido assaltada?

Face a esta classe política perniciosa, e profundamente nociva aos interesses nacionais e do povo, as eleições, geralmente não têm nenhum sentido político de modo a melhorar a vida das pessoas. Fazem eleições quando lhes apetecem ou querem renovar o núcleo de poder para continuar a furtar. As eleições são apenas para estabelecer acordos e consensos à volta do cofre do Estado, e da proteção mútua de algum tipo de bandidagem político/financeiro.

Embora divididos em siglas diversas, a Guiné-Bissau continua nas mãos do mesmo grupo político e da mesma família política. Praticamente, todos que fazem parte da atualidade política, salvo raras exceções, estiveram juntos em alguma aliança política, e a maioria esteve ligado ao Nino Vieira. A meu ver, trata-se duma guerra entre/dentro do grupo de Nino Vieira.

É verdade que muitos dos políticos têm e demonstram um certo compromisso para com o país. Têm a capacidade de, havendo um quadrado sólido/favorável da estabilidade, catapultar a Guiné-Bissau para um patamar de boa governação. Mas, lamentavelmente, um Estado não se faz com 12 pessoas. E, sobretudo, quando os que menos têm algum plano para o país, têm mais força e capacidade de parar o país, sempre que não virem os seus interesses representados. Mergulham sempre o país na instabilidade, que é onde melhor se prosperam.

Recupero, para finalizar esta rápida reflexão, a afirmação de Carlos Lopes em 2019, na cidade de Praia, quando foi lhe perguntado se tinha alguma espetativa em relação a eleições legislativas na Guiné-Bissau, respondeu o seguinte:

“Temos ali uma captura do Estado por interesse privado (…) e as eleições na Guiné-Bissau são apenas uma das formas da manifestação dessa dificuldades, há sempre uma forma de tentar desestabilizar a governação para poder manter os interesses privados…depende sempre se vai deixar quem ganhar governar”.

Consenso em relação à partilha dos recursos e receitas do Estado, acabam sempre por definir novas alianças políticas e o destino do país, valendo-se de qualquer meio, desde que leva ao fim desejado- controlo de recursos.

Observando esta lógica, compreende-se o sentido da eleição na Guiné-Bissau – não tem sentido nenhum (sentido político com finalidade de resolver o problema da vida das pessoas)

Quase 50% da população sofre de analfabetismo (MNE 2019), 49% das crianças, meninas, com idade escolar estão fora do sistema escolar (MICS 2019), mais 60% dos guineenses alfabetizados sofrem de iliteracia, as crianças ainda  assistem aulas sentadas no tronco em muitas localidades da Guiné-Bissau, onde se tem que atravessar de canoa para ir às aulas, morre-se no parto, embora com dados não oficialmente público, o país tem uma das maiores taxas de prevalência de VIH, dentre outras mazelas, malgrado esse quadro, historicamente, não são estes assuntos que dominam o debate político na Guiné-Bissau. São distrações.

A próxima eleição não escapará a regra. Vai prevalecer a patetização da política, empobrecimento dos cargos públicos, a violência e ladroeira. É preciso, algo que defendi há algum tempo, uma nova geração dos guineenses, no pensamento, com uma mentalidade radicalmente oposta a que conduziu o país até este abismo, para relançar um debate sobre o país e definir os caminhos que levariam a uma Guiné-Bissau sonhada. Enquanto isto não for possível, com a atual classe política, nomeadamente, a atual aliança política, seria bom não esperar pelo calçado do defunto.

Bissau, outubro de 2022

Por: Tamilton Teixeira

Professor efetivo na Universidade Amílcar Cabral- UAC

Professor na Universidade Católica de Guiné-Bissau-UCGB

Consultor Independente

Diretor do Centro de Estudos da Educação e Cultura- CEEC-UCGB

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