[ENTREVISTA] O antigo Presidente da República de Cabo Verde, Pedro Verona Rodrigues Pires, afirmou que o regime colonial português era retrógrado e muito repressivo, tanto em Portugal como nas colônias, como também não facilitava e nem aceitava o diálogo e que não havia outra alternativa ao conflito, por isso questionou “como seria possível negociar com alguém que não aceita o diálogo ou que pensa que só ele é que está certo?”
Comandante Pedro Pires, como é conhecido na luta e antigo membro do Conselho Superior de Luta, respondia à questão que atualmente se debate, que era possível conseguir a independência por meio de uma negociação ou diálogo com o governo português, em vez de avançar para a luta armada, o que na opinião de alguns guineenses, terá contribuído na estagnação do país ou nos sobressaltos, golpes de Estado e na instabilidade política e governativa da Guiné-Bissau.
“Não havia outra alternativa ao conflito armado para obter a independência. Outra alternativa que se fala agora é pura especulação espiritual ou alguém que não se debruçou bem sobre esta questão. Tanto é que antes de começar a luta de libertação, o PAIGC apresentou um memorando ao governo português para que se iniciasse um diálogo com o PAIGC para encontrar a melhor saída para a dominação colonial nos nossos países”, esclareceu o comandante na entrevista por via telefónica a O Democrata, que realiza uma série de entrevistas com diferentes personalidades no âmbito da celebração de 50º aniversário da independência da Guiné-Bissau, proclamada unilateralmente a 24 de setembro de 1973.
Lembrou, na mesma entrevista, que o regime colonial na Guiné, fez uma coisa que considera “estúpida” que é proibir a música de Cabo Verde na rádio da Guiné. Também de acordo com a sua explicação, o regime colonial promoveu uma campanha de hostilização dos cabo-verdianos em Bissau e no resto da Guiné.
Sobre o debate concernente ao sistema político entre o semipresidencialista e o presidencial, qual seria a melhor alternativa para a Guiné-Bissau, respondeu que na verdade, cabe aos guineenses e à liderança guineense debaterem este assunto…
O Democrata (OD): A Guiné-Bissau celebra este ano o seu 50º aniversário da independência, conquistada por meio de uma luta armada violenta. Comandante, falar dos 50 anos da independência da Guiné-Bissau, o que lhe vem à memória como recordação do processo difícil de luta, sobretudo de uma situação complexa vivida capaz de comprometer as ideias da luta e possíveis soluções encontradas?
Pedro Pires (CPP): Os 50 anos representam um tempo enorme e sobretudo, há muitos detalhes da nossa vida que perdemos ou esquecemos. Nós geralmente selecionamos aquilo que consideramos mais importante. Falar hoje da proclamação unilateral da independência do Estado da República da Guiné-Bissau é relembrar a história, mas a proclamação e a fundação da República da Guiné-Bissau é um acontecimento político memorável. Primeiro, porque o combate que fizemos para chegarmos à proclamação do Estado da Guiné, não foi um ato espontâneo. Foi um ato construído nos vários anos da luta e podemos dizer que foram dez anos, de 1963 a 1973. Portanto foram também dez anos de acumulação de ganhos, de sacrifícios e de problemas.
O importante aqui é que o ato em si foi um sucesso. Por outro lado, a importância deste ato é que foi o único no historial das lutas de libertação africanas, por isso deve ser trabalhado e debatido, ver o porquê é que foi um sucesso e porquê não foi um fracasso, até porque podia ser… Foi uma decisão correta, uma vitória e foi uma antecipação da independência em certa medida, porque um ano depois houve o 25 de abril. Portanto nós quando fomos negociar em Londres já éramos um Estado, um governo e uma República.
O que devo dizer às novas gerações é que este feito, este trabalho todo merece ser estudado e debatido para ver que lições podemos tirar disso.
OD: Comandante, lembra de algumas situações complexas vividas na luta e capazes de comprometer a luta e as possíveis soluções encontradas…
PP: Há vários casos e, eu posso apresentar duas situações muito complicadas neste momento. A primeira situação complicada foi a invasão de Conacri pela marinha portuguesa, através da “Operação Mar Verde”. O que podia significar se tivesse sido um sucesso? Já agora digo que a “Operação Mar Verde” foi um grande fracasso, porque foi mal preparada, dado que foi feita por gente que tinha o complexo de superioridade, pensando que podia triunfar facilmente com o assalto aos portos de Conacri.
Se o assalto tivesse sucesso seria uma catástrofe para nós (PAIGC), porque teríamos perdido um recurso estratégico importante que é a retaguarda política, militar e económica que representava a República da Guiné-Conacri para o PAIGC e para a luta que conduziu. Foram momentos de grandes tensões e momentos complicados, porque depois disso, tínhamos que tirar lições de vários aspetos. Tínhamos que tirar as lições em relação àquilo que aconteceu conosco, mas tínhamos que tirar lições em relação aquilo que aconteceu com a Guiné e com o governo de Sékou Touré.
Um dos elementos trágicos dessa invasão foi a traição de muitos quadros superiores da Guiné-Conacri ao seu país. O elemento traição aí foi perigosíssimo e podia culminar no sucesso do assalto, mas felizmente acabou num enorme fracasso. É importante realçar aqui a contribuição dada pelos combatentes do PAIGC que estavam no porto de Conacri naquele dia. Lembro aqui de uma pessoa que teve um papel importantíssimo que é o Mateus Correia, que ajudou as forças locais a fazer face aos invasores.
Outro acontecimento trágico capaz de comprometer a luta foi o assassinato de Amílcar Cabral. O assassinato de Cabral em janeiro de 1973, quando estava em preparação todo o processo para a proclamação unilateral do Estado da Guiné-Bissau, sobretudo estávamos numa situação em que estávamos à espera de misseis antiaéreos Estrela 2. Esses mísseis 2 foram essenciais para a derrota do exército colonial, porque eliminaram aquilo que era uma superioridade que chamamos de tecnologia do exército português que é a aviação. Anularam a capacidade de combate aéreo, da aviação portuguesa e fizeram-nos chegar a uma situação de igualdade de condições, porque não podia usar aviões de combate nem helicópteros e foi obrigado a marchar, como nós éramos obrigados a marchar.
Voltando ao assunto, o assassinato de Amílcar Cabral podia ser também o fim ou a nossa derrota, mas a pergunta que se coloca é: porquê não foi o fim da luta ou a nossa derrota? Não foi porque o PAIGC já era forte e estava em condições de continuar o combate com os seus quadros. E houve um elemento que acho extremamente interessante. Nós pensamos na altura que íamos continuar a luta até a vitória. Isso permitiu que a 22 de maio de 1973, as nossas forças conquistassem o quartel de Guiledje, que representa o princípio do fim do colonialismo na Guiné-Bissau.
OD: Porque é que a conquista do Guiledje significou o fim do colonialismo na Guiné?
PP: Não foi só Guiledje, apesar de ser o objetivo, mas Guiledje teve uma extensão para o Gadamael Porto. Depois das forças colonialistas fugirem de Guiledje e se refugiarem no quartel do Gadamael Porto, que também foi atacado e completamente destruído. O Governador e Comandante das Forças Armadas Portuguesas na Guiné teve que ir pessoalmente a Gadamael Porto para substituir o comando, porque as perspectivas eram complicadas.
Houve também o ataque e a destruição de Guidadje no norte, de modo que as grandes batalhas finais contra o colonialismo na Guiné foram Guidadje, Guiledje e Gadamael. É verdade que houve outros combates, mas estes foram os combates de referência da vitória do PAIGC na luta de libertação.
OD: Sr. Comandante, existem vozes críticas que acham que era possível conseguir a independência por via de diálogo. Que comentários oferece-lhe fazer sobre essa corrente de ideias?
PP: Isso é brincadeira! … Depois de perder a guerra está claro que o inimigo vai dizer que não era preciso fazer a guerra. Não era possível, por via do diálogo, negociar a independência, porque o regime colonial português era retrógrado e não aceitava o diálogo. O regime colonial era repressivo em Portugal e repressivo nas colônias e não aceitava o diálogo. Como negociar com alguém que não aceita o diálogo e como negociar com alguém ou para quem toda a gente estava errada e só ele é que estava certo. Não era possível…
Começando a luta e se o diálogo fosse possível, creio que os portugueses fariam uma proposta séria aos movimentos de libertação, não só ao PAIGC, mas também ao MPLA, à FRELIMO, à UNITA e outros, mas isso não aconteceu. Para que o colonialismo acabasse, era preciso que fosse derrotado política e militarmente.
Não havia outra alternativa ao conflito armado para obter a independência. Outra alternativa de que se fala agora é pura especulação espiritual ou alguém que não se debruçou bem sobre esta questão. Tanto é que antes de começar a luta de libertação, o PAIGC apresentou um memorando ao governo português para que iniciasse o diálogo com o PAIGC para encontrarem a melhor saída para a dominação colonial nos nossos países.
Qual foi a resposta dos portugueses? Ignoram pura e simplesmente, de modo que o resto é conversa de quem não esteve lá ou não viveu a situação. Acho que essas afirmações são especulações como outra qualquer…
No mundo há várias soluções para cada caso, mas entre as soluções, existe a solução exequível, quer dizer aquilo que é viável é que se pode fazer. Portanto, a solução exequível para o colonialismo português nos nossos países, era a luta armada e a derrota militar e política do colonialismo.
OD: Pode-se afirmar hoje que a Guiné-Bissau é um Estado independente politicamente. Na sua opinião, este era o Estado que se sonhou criar há 50 anos?
PP: O percurso dos países que se libertaram do colonialismo foi um percurso complexo, em que aconteceram fenômenos vários. Aconteceram fenômenos errados, coisas bem feitas, maus e bons dirigentes. Acho que o que nos compete é saber que o que fizemos ou que temos feito não é perfeito e precisa ser aperfeiçoado.
A questão do fundo são as instituições que criamos para a gestão dos Estados. As nossas instituições são perfeitas? Está claro que não. As nossas lideranças são perfeitas? Claro que não. O fundamental é que haja uma vontade e um grupo de gente motivado para corrigir erros da caminhada e para aperfeiçoar o processo até chegarmos a uma situação satisfatória e equilibrada daquilo que temos.
OD: Passados 50 anos, a Guiné parece ficar no tempo e Cabo Verde mais avançado e desenvolvido em termos sociais, económicos e culturais. Na sua opinião, o que terá falhado na Guiné-Bissau e o que impediu o país de se tornar numa nação, estável e próspera?
PP: O povo da Guiné fez uma obra extraordinária que é a luta de libertação. E nós ficamos admirados que tivéssemos feito tudo aquilo e que tivéssemos triunfado com os recursos humanos que tínhamos. É preciso ter isso em conta. A Guiné-Bissau terá falhado e Cabo Verde não terá falhado? Essa é uma comparação que eu acho que não tem sentido. Nós temos que trabalhar muito os contextos e, sobretudo, os contextos humanos. Não há situações iguais e a tendência é ter um desenvolvimento diferente.
Voltando à Guiné-Bissau, eu quando olho para a Guiné, a primeira constatação que faço é que na verdade a luta de libertação nacional foi capaz de unir a nação guineense. Unir a nação guineense plural, porque por vezes, quando falamos de nação, temos a ideia de nação homenageia. Mas temos uma nação plural e que se mantém fiel a si mesma, querendo continuar como nação e querendo continuar a construção de um futuro melhor.
Neste momento, a minha visão do futuro próximo da Guiné-Bissau é uma visão optimista. Depois de muitas peripécias e de coisas muito complicadas, a Guiné hoje dispõe de uma maioria estável e dispõe de instituições. Essa maioria estável do meu ponto de vista, está em condições de lançar novas bases do desenvolvimento económico do país, mas sobretudo do desenvolvimento institucional e cultural.
E com uma maioria estável o meu desejo é que consigam traçar melhor rumo e estabelecer o melhor programa a executar, sobretudo unir o país à volta do destino comum que une todo o país. Desenvolver o espírito do compromisso, do diálogo e o espírito do consenso que são elementos importantes para pensar o futuro.
OD: O PAIGC foi um partido revolucionário ideologicamente virado para as massas populares. Acha que o atual PAIGC ainda mantém essas ideologias e estará em condições de corresponder aos desafios atuais?
PP: O PAIGC foi um movimento da libertação vitorioso. Agora neste momento, as novas gerações do PAIGC devem fazer com que o PAIGC seja um construtor vitorioso de um futuro próximo, equilibrado e do desenvolvimento na Guiné. É o desafio que se coloca ao PAIGC e à sua liderança, portanto esses mesmos desafios se colocam a Guiné-Conacri e pior ainda aos malianos e se colocam Cabo Verde.
O que é que vamos fazer para que o futuro próximo seja de estabilidade, de progresso, de desenvolvimento e de uma coisa que é importante que é a tomada de consciência de nós mesmos, sabendo que o nosso futuro não depende da doação dos outros. O nosso futuro depende da nossa obra e daquilo que a gente for capaz de fazer…
OD: Algumas vozes defendem que a dificuldade de coabitação entre a ala cabo-verdiana e a ala guineense no seio do PAIGC terá facilitado o assassinato de Amílcar Lopes Cabral. Concorda?
PP: Quem é que faz essa leitura? Eu acho que quem faz essa leitura é quem quer ou está à procura de desculpa para si próprio.
Os colonialistas não querem responsabilizar-se por esse crime de guerra e crime político que foi o assassinato de Amílcar Cabral. Está claro que tenta se desculpar, a culpa não é nossa e que a culpa é dos cabo-verdianos ou dos guineenses.
Se for analisar a guerra psicológica que o colonialista fez ao PAIGC era precisamente para dividir o partido e, sobretudo afastar os cabo-verdianos da Guiné. Era bom que relesse a política do Spínola na Guiné…
Spínola chegou até a fazer uma coisa estúpida na Guiné que é proibir a música de Cabo Verde na rádio na Guiné. Promoveu uma campanha de hostilização dos cabo-verdianos em Bissau e no resto da Guiné. Isto teria ou não seus efeitos? Quem fez essa campanha em Bissau e quem fez uma guerra psicológica contra o PAIGC e contra os cabo-verdianos, em particular?
Está claro que foi o poder colonial através dos seus órgãos, nomeadamente: a PIDI, os serviços especiais e o programa de não sei quanto das populações, etc… É bom estudar melhor a guerra psicológica para entender tudo isso…
Afirmar-se agora que foi o desentendimento entre cabo-verdianos e guineenses que facilitou o assassinato de Cabral! Agora pergunto, o porquê é que você me está a entrevistar e qual é a razão!?
Está-me a entrevistar porque fiz alguma coisa certa durante o percurso na luta de libertação nacional. Eu acho que a questão da unidade da Guiné e Cabo Verde precisa também de ser debatida com seriedade e com a paz de espírito sem ideias de revanche.
OD: Está em voga um debate patente à volta da instabilidade política e governativa na Guiné-Bissau. Alguns atribuem a culpa aos políticos e aos militares, outros apontam falhas ao sistema político e até defendem a mudança do sistema. Qual é a sua opinião?
PP: Temos que buscar as causas. Eu acho que o que aconteceu é que a Guiné vem precisamente de uma luta armada vitoriosa. Levar em conta o papel das armas e dos militares no processo da libertação, é preciso pensar agora o que não correu bem com a transição de movimento da libertação armado para um Estado civil ou digamos assim para uma situação de paz. O que é que não correu bem nessa transição, portanto é preciso analisarmos a transição e, sobretudo os erros cometidos durante a transição para entender o resto…
Quanto à nova geração de políticos. É bom refletir profundamente, se os políticos é que lideram o país e se a liderança é má é porque os líderes falharam. Ou os líderes não são suficientemente formados ou habilitados a gerir a situação.
Eu sou optimista quanto ao futuro próximo da Guiné, tendo em conta que o país tem hoje uma maioria clara. É fundamental que essa maioria clara trabalhe no sentido de consolidar as instituições do Estado de direito e consolidar o comportamento das pessoas e avance no bom sentido.
Amílcar Cabral dizia que os povos não lutam pelas ideias. Os povos lutam geralmente para ter uma vida melhor. Portanto é fundamental que se proporcione ao povo da Guiné e a sua liderança uma vida melhor. Com a vida melhor, há maior estabilidade e há uma visão diferente do futuro.
OD: Sr. Comandante, de acordo com a sua experiência e do conhecimento da Guiné-Bissau e dos guineenses, entre o sistema semipresidencialista e o sistema presidencial, qual seria melhor para a Guiné-Bissau?
PP: Francamente não tenho resposta para isso. Eu sou contra as ideias, às vezes, que nós pensamos que os outros é que têm soluções ou respostas para os nossos problemas. Eu não tenho solução e nem tenho solução para a questão do desenvolvimento institucional do Estado da Guiné-Bissau, se deve continuar no sistema em que se encontra de semipresidencialismo ou se deve ir para um presidencialismo completo.
Cabe aos guineenses e à liderança guineense debater isso. A escolha é dos guineenses, se eu estivesse na Guiné e se participasse na vida política na Guiné, eu faria a minha escolha. Mas eu estou fora e não é razoável que eu esteja fora e a dar palpites ou soluções. É fundamental o debate interno, diálogo e buscar o entendimento entre os guineenses e a partir daí que se encontrem as soluções.
Está claro que o presidencialismo pleno tem as suas vantagens e desvantagens. O semipresidencialismo tem as suas vantagens e desvantagens também. Cabe aos guineenses, à sua liderança política, aos seus intelectuais, investigadores e a sua sociedade decidir pela melhor escolha do sistema.
Por: Assana Sambú/Filomeno Sambú