Opinião: CONGRESSO DE CACHÉU, 10 ANOS DEPOIS!

No próximo dia 30 de janeiro, faz dez anos do início do VIII Congresso do PAIGC, comummente apelidado de Congresso de Cacheu, por ter sido realizado naquela antiquíssima cidade. Foi um dos congressos mais concorridos na história do PAIGC e envolvido desde o seu início por uma atmosfera tensa e de cortar à faca, que acabaria doze dias depois contra os cinco inicialmente previstos. O fito último dos trabalhos, era erguer uma nova liderança que conduziria o nosso grande partido a uma possível vitória nas eleições gerais de 2014.

Volvidos 10 anos desse mítico congresso, proponho aqui um exercício de reflexão meramente académico, com uma leitura comparativa e objetiva sobre a imagem do partido herdado antes desse congresso, em oposição à imagem atual do partido sob a liderança do seu atual líder.

Quais foram os ganhos para o partido em termos deafirmação da democracia interna guiado pelo estatuto de 2014, em oposição ao estatuto atual do partido?

Importa também analisar a gestão das vitórias eleitorais do partido, tendo em consideração as três alianças pós-eleitorais conduzidas pelo atual líder e por fim o papel das redes sociais como forma de intervenção política. Numa análise desprovida de qualquer subjetividade e sem paixões, é fundamental que sejam apresentados factos e não meramente opiniões pessoais. Porquê? Porque as opiniões discutem-se, mas como se diz na gíria popular,contra factos não há argumentos.  

Filósofos e estudiosos da ciência política têm-nos brindado, ao longo dos tempos, com teorias sobre o homem em sociedade e a sua relação com o Estado, quer no sentido estrito, quer no sentido mais lato. Para o distinto filósofo e pensador suíço Jean Jacques Rousseau, “o homem nasce bom, mas é a sociedade que o corrompe”. Parafraseando Thomas Hobbes, também um distinto pensador inglês que dizia “o homem é o lobo do homem”, com isto querendo dizer que é necessário um Estado que imponha leis evitando que o ser humano com as suas veleidades possa por em causa a própria vida em sociedade, abrindo assim “uma guerra de todos contra todos”. A tão debatida questão da escolha entre homens fortes ou instituições fortes é atual e pertinente no contexto guineense, sendo certo que a preposição de Castro, “os homens passam, os povos ficam; os homens passam, as ideias ficam”, ainda faz eco.

Olhemos nesse sentido para algumas situações apenas exemplificativas, não querendo ser muito exaustivo:

1. O reforço dos poderes do Presidente do Partido em detrimento das competências dos órgãos do Partido.

O estatuto que orientou o partido em 2014 vinha do congresso de 2008 em Gabú, e nele constam alguns artigos que a meu ver, precisam de ser escrutinados numa lógica comparativa com o estatuto atual do partido. 

Na secção I- que tem como epigrafe “Do Congresso”, no seu Art.º 23 que fala “ Da natureza e composição” consta que:

1. O Congresso é o órgão deliberativo máximo do PAIGC, sendo presidido por uma Mesa composta por um Presidente, dois Vice-Presidentes e dois Secretários.

2. Tomam parte no Congresso:

a) Delegados eleitos pelas Conferências Regionais;

b) Delegados representantes da JAAC, da UDEMU, do Grupo Parlamentar, dos trabalhadores militantessindicalizados do PAIGC, do CONQUATSA, e das estruturas representativas dos militantes na diáspora, eleitos nas respetivas estruturas competentes, cujo número é fixado pelo Comité Central;

c) Delegados por inerência.

3. Para efeitos do disposto na alínea c), do nº 2, deste artigo são delegados por inerência:

a) Os membros do Comité Central;

b) Os membros do Conselho Nacional de Jurisdição;

4. O número de delegados por inerência não pode exceder um terço do número total de delegados ao Congresso.

No estatuto atual, aprovado no congresso de Gardete em 2022, na secção I – que tem como epigrafe “Do Congresso”, no seu Art.º 27º da “Natureza e Composição”, consta que:

1. O Congresso é o órgão deliberativo máximo do PAIGC, sendo presidido por uma Mesa composta por um Presidente, dois Vice-Presidentes e dois Secretários.

2. O Congresso do PAIGC tem a seguinte composição:

a) Delegados por inerência;

b) Delegados eleitos pelas Conferências Regionais incluindo os da diáspora;

c) Delegados representantes da JAAC, da UDEMU;

d) Delegados escolhidos pela Comissão Permanente, sob proposta do Presidente do Partido, não devendo ser superior a 1,5% do total dos Delegados ao Congresso.

Comparando estes dois artigos, vislumbra-se que há um retrocesso em termos da democratização interna do partido, senão vejamos. Na alínea d) do nº 2 do art.º 27 do atual estatuto, consta que o Presidente do partido pode propor à Comissão Permanente 1,5% dos delegados para serem escolhidos como delegados ao congresso. Isto significa tão simplesmente que se o Presidente do partido for candidato ao congresso ou se quiser apoiar algum candidato ao congresso, ele ou essa pessoa já leva umavantagem de 1,5% dos delegados da sua própria conveniência ao congresso. Pergunto onde está o princípio da paridade de armas? Será isto democrático? Não será isto batota para se fabricar no gabinete um vencedor antecipado do congresso?

Creio que desde a criação do partido pelo nosso saudoso líder Amílcar Lopes Cabral, passando pelo Presidente Luís Cabral, pelo Presidente João Bernardo Vieira, Francisco Benante, Carlos Gomes Júnior, nunca houve estatuto igual ao atual. Isto é, um estatuto onde parte dos delegados ao Congresso são escolhidos pelo próprio Presidente do partido, salvo nos regimes comunistas, em que o Presidente é visto como titular do poder absoluto, com aversão às leis democráticas. No estatuto de 2014, tirando os delegados por inerência, todos os outros delegados eram escolhidos livremente nas respetivas bases do partido com respeito observando-se o princípio da liberdade do exercício democrático, sem qualquer interferência do Presidente do partido.

Outro aspecto não menos importante consta da alínea b),do nº2 do artigo 24 do estatuto de 2014, em que os delegados das organizações de massa do partido, JAAC, UDEMU e de outras estruturas ligadas ao partido, nomeadamente, o grupo parlamentar, os trabalhadores militantes sindicalizados, normalmente são escolhidos mediante processos eleitorais. No entanto, no estatuto atual como pode ver na alínea c), nº 2 do art.º 27, transparece que os delegados da JAAC e da UDEMU não são eleitos mas sim escolhidos por cooptação. Por último, os delegados que fazem parte do CONQUATSA, ou seja a massa cinzenta do partido, foram simplesmente excluídos dos atuais estatutos.

Na Secção II “Do Comité Central”, referente aos Estatutos de 2014, no seu art.º 30 alínea j) referente àscompetências do Comité Central “aprovar sob proposta do Bureau Político, a lista dos candidatos a Deputados e dos candidatos às eleições autárquicas. Inversamente, a alínea q) do art.º 33 conjugado com aalínea h) do art.º 41 do estatuto atual atribui agora essa competência ao Presidente do Partido nos seguintes moldes “aprovar as listas de candidatos a deputados e a cargos municipais, sob proposta do Presidente do Partido”.

Isto só pode ser entendido como uma evolução bastante negativa relativamente ao estatuto de 2014, na medida em que agora torna o Presidente do Partido omnipresente e omnipotente. As listas sempre foram propostas pelas bases do partido à comissão permanente, mas nunca sob proposta do Presidente do Partido como foi introduzido noatual estatuto. 

No que tange ao art.º30 “Da Competência” do Comité Central, no estatuto de 2014, também encarnava maior liberdade democrática no interior do partido do que agora. O exemplo disso é o previsto na alínea n) em que cabia ao Comité Central apreciar e aprovar as propostas de apoio ao candidato a Presidente da República e de escolha de candidatos a Presidente da Assembleia Nacional Popular.Ora temos exemplos no passado no caso do Presidente Malam Bacai Sanhá e Raimundo Pereira e mais recente entre José Mário Vaz e Mário Lopes da Rosa onde manifestaram as suas candidaturas no Comité Central sem que fosse exigida a proposta do Presidente do partido. 

Hoje, se analisarmos o estatuto atual nesta matéria, no seu art.º41 nº1 alínea f), cabe ao Presidente do Partido propor a Comissão Permanente os candidatos tanto ao cargo de Presidente da República como do Presidente da Assembleia Nacional Popular. Mais uma vez, só é candidato a Presidente da República pelo PAIGC quem o Presidente do partido quiser ou seja quem ele propuser. Se ele não propuser o nome do fulano, sicrano ou beltrano, esses não poderão ser candidatos. É cristalino que tudo gira em torno da vontade de um único chefe.

Por fim, outro ponto digno de realce no estatuto é a escolha do Presidente da Comissão Política Regional. No atual estatuto no seu nº 2 do art.º 71 consta que a Comissão política Regional é composta por um Presidente, proposto pelas estruturas regionais do Partido, em concertação com o Presidente do Partido… Neste caso, esta concertação exigida demonstra o controlo em absoluto do Presidente do partido do processo de escolha dos líderes regionais. O que quer dizer que os poderes atribuídos ao Presidente do partido no atual estatuto, ultrapassam os limites da razoabilidade exigidos em democracia representativa, em que os poderes deviam ser atribuídos aos órgãos colegiais em detrimento dos órgãos singulares.

   2.Durante dez anos foram assinadas três alianças políticas que não tiveram qualquer impacto político positivo para o partido e para os seus militantes.

É importante reconhecer que o partido PAIGC, não tem que se limitar em gerir vitórias eleitorais, mas também preocupar-se com a gestão do poder que lhe foi atribuído pelos eleitores. Ao longo destes dez anos, vimos uma liderança mais preocupada em se vangloriar com as vitórias eleitorais, deixando de lado o poder que advém dessas eleições. A gestão do poder oriundo de um processo eleitoral requer a adoção de estratégias sólidas que passam necessariamente pelo primar do interesse do partido e dos seus órgãos internos.

Em 2014, após um congresso fracturante, o partido precisava de uma liderança reconciliadora que pudesse trabalhar no sentido de aglutinar as diferentes sensibilidades em torno dos interesses do partido. Infelizmente e a semelhança do que está acontecer agora, o atual líder resolveu enveredar-se pela estratégia inversa de procurar alianças fora do partido com o único propósito de liquidar opositores internos. 

Fez-se então uma aliança com o PRS onde várias pastas foram atribuídas a este partido no governo. Esta estratégia maligna para o partido acabou por tornar o país ingovernável com a queda dos sucessivos governos, pondo em causa mais uma vez o suor dos militantes.

Em 2019, a experiência não foi diferente na medida em que depois da vitória eleitoral do PAIGC, a atual liderança do partido, privilegiou a assinatura de um acordo de coligação pós-eleitoral com a APU-PDGB, sem que tenha sido feito um diagnóstico exaustivo do falhanço da anterior aliança de 2014. O referido acordo atribuiu várias pastas na governação à oposição bem como o lugar de 1º Vice-Presidente da Assembleia Nacional Popular que pertencia por direito ao PAIGC, à APU-PDGB, violando desse modo o regimento da ANP e a vontade popular.

Em julho de 2023, a coligação Pai Terra Ranka foi empurrado arbitrariamente pelo atual líder do PAIGC para uma nova aliança, cujo fim último era de angariar o apoio de dois partidos (PRS e PTG) nas próximas eleições presidenciais de 2025. Mais uma vez, várias pastas foram atribuídas a estes dois partidos e o lugar de 1º Vice-presidente da ANP foi atribuído ao líder do PRS. Esta aliança acabou da mesma forma que as anteriores, ou seja, num autêntico falhanço de estratégia política. Desta feita, a pretensão do líder em colocar os seus interesses pessoais em detrimento dos interesses do partido, que havia ganho as eleições meses antes com 54 deputados sem necessidade de qualquer aliança, já era visível para todos.

 3.A POLÍTICA E AS REDES SOCIAIS

Uma outra realidade que surgiu nestes 10 anos e que tem vindo a ganhar espaço no campo político, impactandosobremaneira o modus faciendi da política no interior do partido e no país em geral, está relacionada com as redes sociais. Em 2012/13, fui um dos percursores, ao lado de outros camaradas, na utilização de espaços nas redes sociais para difundir ideias políticas do nosso grandepartido e da sua governabilidade. O objetivo era simplesmente de informar àqueles que, pela natureza dos seus trabalhos, não estariam em condições de acompanhar a par e passo as vicissitudes da política em tempo real.

Infelizmente, hoje, as redes sociais são aproveitadas como um mecanismo de inibir e aterrorizar os militantes, ou opositores, tanto internos como externos, que queiram emitir opiniões contrárias. Não era previsível que a utilização deste fenómeno pudesse desembocar na criação de milícias na internet que hoje conduzem uma espécie de “terrorismo” político. O sentido destas acções é de lançar todos os dias boatos ou informações falsas contra os opositores com o objetivo de descredibilizá-los no jogo político. Não ponho em causa a liberdade de cada um seexpressar da forma como bem entende, mas penso que tudo na vida tem limites e a política deve ser feita com classe e não com indecência. 

Conclusão:

Em jeito de balanço, cumpre questionar qual é a imagem do partido em 2024? O que é que o partido ganhou com os dez anos de liderança do atual líder? A resposta a esta questão deve ser colocada aos militantes, simpatizantes e dirigentes do partido? Contudo, na minha humilde opinião, penso que o partido ganhou cisão, divisão e entrou numa lógica de permanente conflito e desconfiança contra todos os outros atores políticos com peso neste país,ou seja, aqueles que poderão contribuir para a edificação de um verdadeiro Estado de direito democrático. Hoje a desconfiança entre os atores políticos atingiu um nível nunca antes visto.

A estratégia de em teoria, proclamar a defesa dos valores e a visão de Amílcar Cabral e na prática, virar-se para um estilo de liderança que cultiva o culto de personalidade ou um Marxismo-leninismo absolutamente antagónico ao modelo de que se inspirou a nossa democracia, faliu completamente. Outrossim, o fortalecimento dos poderes do Presidente do partido no atual estatuto, em vez de se fortalecer as bases do partido, através da aprovação Ex vi de disposições estatutárias que dão vantagens ao Presidente tornando-o omnipotente no jogo político, revela desdém aos princípios e valores que o partido sempre defendeu. 

Além disso, constata-se que as três alianças políticas assinadas durante dez anos, foram todas um autênticofiasco na medida em que não reflectiam os interesses reais do partido, mas sim os interesses pessoais de quem as proporcionou. Estas alianças são quase que doenças infecciosas para o nosso grande partido. Do mesmo modo, é de lamentar que certas pessoas façam o uso indevido das redes sociais, para em nome do partido, proferir ataques indecentes aos adversários políticos, não por estarem genuinamente preocupados com o partido, mas para criar nos camaradas o medo de criticar a gestão do nosso grandepartido. 

Em síntese, considero que a política é a inteligência em movimento onde os homens políticos devem se adaptar ao contexto e às circunstâncias, colocando sempre os interesses superiores da nação em primeiro lugar. Mesmo as grandes guerras acabam em torno de uma mesa de negociação, tal como fez Nelson Mandela. Agora penso que é irracional, durante dez anos, arrastar toda uma nação a uma guerra de egos. As guerras pessoais não contribuem para o avanço da nação, antes pelo contrário fazem recuar o país. Qualquer cidadão deve estar disponível para as verdadeiras guerras que temos neste país nomeadamente contra a pobreza, a doença, a injustiça, etc. Foram dezanos de muitas expectativas, mas zero resultados.

Bissau, 25 de janeiro de 2024

Por: João Bernardo Vieira, Advogado/ Político

Referências

Rousseau, Jean-Jacques, O Contrato Social, in 1762

Thomas, Hobbes, Leviatã, in 1651, 

Castro, Fidel, Junho de 1961, Mensagem dirigida aos intelectuais

Kléber, Carrilho, Faça Política, 2021

Author: O DEMOCRATA

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