Se Amílcar Cabral estivesse de vida nos nossos dias, teria completado hoje 100 anos, deveras, no dia 12 de setembro de 2024 celebra-se o centenário de seu nascimento, na Guiné-Bissau e na República irmã de Cabo Verde simultaneamente.
Não restam dúvidas para ninguém que Amílcar Cabral é uma personalidade excepcional, quer dentro do nosso país, bem como em África e no mundo.
Parafraseando o Comandante Pedro Pires, “Amílcar Cabral de 1973 não é o mesmo de 2023 ou 2024 porque antes era pessoa, agora é a memória”.
Falar de Amílcar Cabral é falar da sua memória de seu legado e “devir” da sua representação simbólica enquanto substratos para a construção da história e da identidade nacional.
É sobretudo falar do legado deixado por ele, para estudos e aprendizagem histórica. Os seus acervos documentais textuais, vestígios arqueológicos, registros orais, vídeos, fotos, livros, manuscritos, áudios e resquícios de objetos históricos, constituem objetos que carregam o significado para a Memória.
Os Arquivos por ele produzidos reúnem não apenas escritos da sua autoria, mas igualmente documentação que recolheu de outros autores, como Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos, entre outros, nos quais expressam as reivindicações políticas e a determinação mais ou menos consciente dos povos africanos pela conquista da sua independência, formas de luta anticolonial que posteriormente despertaram impulsos nacionalistas do PAIGC contra o jugo colonial, constituindo fontes primárias para a compreensão da história contemporânea.
A Guiné-Bissau e a República irmã de Cabo-verde decidiram comemorar o centenário de Amílcar Cabral de forma síncrona num pathos formal, mas, ambos têm encarado o sentido e o significado da memória de forma completamente diferente.
Na Guiné-Bissau, infelizmente, a riqueza e o potencial da memória de Amílcar Cabral é extraordinariamente desconhecida pela nossa juventude. O rico patrimônio documental de Amílcar Cabral é reconhecido mundialmente, mas é, infelizmente, pouco conhecido e valorizado ou talvez mesmo depreciado por todos os governos que passaram na Guiné-Bissau desde a independência, incluindo os atores políticos e a sociedade civil.
O essencial dos originais físicos do arquivo de Amílcar Cabral encontra-se conservado longe das fronteiras nacionais na Fundação Mário Soares, em Lisboa, etc. Qual a proporção da documentação que foi transportada para a Fundação Mário Soares? É-nos impossível de responder, fala-se de mais de 10.000 documentos.
Embora alguns estejam digitalizados e acessíveis via on-line, certo é que esse patrimônio documental se encontra fora do controle do Estado e da sociedade guineense, limitando o exercício da sua soberania sobre essa memória.
Mais de 50 anos de pós-emancipação da Guiné-Bissau, o país ainda nem se quer dispõe de instituições responsáveis pela preservação e conservação da memória nacional, estamos referindo o Museu nacional para não falar do Arquivo e Biblioteca verdadeiramente nacionais, que são fontes históricas imprescindíveis à reconstrução da história nacional, não só cronológica, mas também crítica e científica.
Todos ficamos impávidos com a situação, as organizações de sociedade civil como a Liga Guineense de Direitos Humanos-LGDH não demonstram o interesse em reivindicar direitos como o direito à memória, um dos direitos fundamentais. Quando se fala de direitos humanos, não podemos fechar os olhos perante os crimes de memória. A sociedade guineense precisa reivindicar políticas de memória, baseadas nas suas identidades indivíduas e coletivas, que não sejam somente de recordar, de descrever como era o passado.
Já em Cabo-Verde, a história é outra. Há mais de 20 anos que o país dispõe de instituições de memória, refira-se o museu ou Instituto de Patrimônio Cultural, Instituto do Livro e da Biblioteca Nacional e Instituto de Arquivo Nacional. O Cabo-Verde é dotado de uma política ambiciosa em termos de documentação, bibliotecas e arquivos que lhe permita desenvolver a sua política de memória com total soberania, tendo conservado e preservado o essencial da memória de Amílcar Cabral.
É nesse pressuposto que o Estado Cabo-verdiano, apresentou candidatura dos escritos de Amílcar Cabral para o registo da Memória do Mundo e incorporou também a data de 12 de setembro nos aniversários das personalidades apoiadas pela UNESCO. O Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas já criou para o efeito, uma Comissão de Acompanhamento da candidatura.
O desprezo da memória de Amílcar Cabral pelos governos e a sociedade guineense é apenas um capítulo duma narrativa maior da situação de arquivos da administração pública, votados ao abandono e ao esquecimento. Por esta razão, a produção escrita da história da Guiné-Bissau sofre estruturalmente de uma complexidade sobretudo no que diz respeito à disponibilidade de fontes elementos constitutivos da identidade da Nação guineense.
Esta situação pode conduzir à uma “amnésia institucional” porque o arquivo de forma geral é, entre outras coisas, o conhecimento do Estado sobre o Estado, o conhecimento das sociedades sobre si mesmas.
É dessa forma que nós, os guineenses, celebramos de forma polifônica o centenário de Amílcar Cabral, na “ausência” da sua memória no solo nacional e de iniciativas concreta que visam a reverter a situação?
É dessa forma que nós, os guineenses, lembramos Amílcar Cabral, com manifestações e conferências, sem que haja uma mínima reflexão, medidas ou compromissos no sentido de tirar a memória de Cabral das zonas cinzentas, obscuras e nebulosas da nossa história?
Até quando a Guiné-Bissau espera desenvolver a sua soberania em matéria de políticas memoriais e patrimoniais?
A nossa maior fraqueza continua a ser a ausência de políticas soberanas de memória e do património.
Creio que estamos a lembrar do legado de Amílcar Cabral, sem ter em conta a sua memória. Jacques Le Goff, descrevendo a importância da preservação da memória para a consciência humana, aponta que “a memória, por conservar certas informações, contribui para que o passado não seja totalmente esquecido, pois ela acaba por capacitar o homem a atualizar impressões ou informações passadas, fazendo com que a história se eternize na consciência humana”.
A memória de Amílcar Cabral só pode ser lembrada se assumirmos todos compromissos de adotar uma política memorial credível e sustentável. Caso contrário, continuaremos estar á reboque de quem organiza e valoriza a nossa própria memória para a escrita da história.
A verdadeira lembrança do legado de Amílcar Cabral passa pela luta pelo direito à sua memória.
Por: Iaguba DJALO
Investigador – Bibliotecario/Arquivista