Crónica do centenário: Cabral e a audiência no Vaticano em 1970

O encontro no Vaticano entre o Papa Paulo VI e os representantes dos movimentos anti-colonialistas em África, em 1 de julho de 1970, foi um dos momentos decisivos no processo da luta, sobretudo na vertente diplomática. No centro desse sucesso diplomático estava um estratego chamado Amílcar Cabral. 

Tudo aconteceu à margem da Conferência de Solidariedade com os Povos das Colónias Portuguesas decorrida de 27 a 29 junho de 1970 em Roma, Itália. Um feito inédito que se materializou graças às relações entre a esquerda italiana e os movimentos revolucionários africanos MPLA, FRELIMO e PAIGC. 

Agostinho, Marcelino dos Santos e Amílcar Cabral foram os rostos da reunião. Os bons resultados da conferência acabaram por ser superados pela surpresa audiência de 20 minutos entre o Chefe da Igreja Católica Apostólica Romana e os líderes independentistas.” Conheço bem a situação trágica de algumas regiões em África. E a igreja está ao lado dos que sofrem”, terá dito o Papa aos visitantes.

Nos corredores desse balé diplomático, havia Marcella Glisenti, editora e militante terceiro- mundista.  Marcella foi uma interlocutora chave com Vaticano. A audiência com Papa foi um autêntico sismo em Portugal. Os dias que se seguiram ao encontro instalou-se um incidente diplomático que levou à convocação a Lisboa do Embaixador Eduardo Brazão para consultas. O próprio Marcelo Caetano não hesitou em qualificar o encontro de Papa com  terroristas em Roma de um ardil desmascarado.

No meio da agitação, Vaticano tentara jogar ao apaziguamento, afirmando que o Papa tinha dado apenas uma “benção aos terroristas”.

Na realidade, a cobertura mediática do evento atingiu outros patamares e o “episódio” mereceu destaque em todo mundo ocidental.

Foi uma vitória política e diplomática que ultrapassou as expetativas ao ponto de Cabral, na conferência de imprensa em Roma, falar de uma vitória moral contra Portugal e seus aliados que sempre tentaram justificar e limpar os crimes contra as populações africanas em nome do projeto evangelizador e civilizacional.

Como sempre, ao seu estilo, Cabral soube aproveitar do palco e do momento para dissertar sobre o avanço da luta armada nas colônias e as relações com o mundo em plena guerra fria, desmistificando a sensível questão  de apoio da URSS aos movimentos panamericanos. Se a Itália (membro da NATO) vendia as armas a Portugal para matar a população africana, a URSS podia igualmente fornecer armamentos aos movimentos anti-coloniais para se defenderem! Lá está, uma rutura na abordagem para realçar a autonomia da liderança da luta em África. A parceria com a URSS, a China e outros Estados como a Suécia, a Finlândia, a Dinamarca não podia condicioná-los a ter relações no Ocidente desde que essas relações visassem o aniquilamento do domínio colonial em África.

Para além do simbolismo, a audiência no Vaticano representou uma viragem na trajetória da luta anti-colonial e Cabral qualificou-o de “primeiro dia da criação da nossa nação”, em resposta a Marcella Glisenti que acabava de murmurar-lhe que o Vaticano aceitou o pedido de encontro. 

Bissau, 14 de setembro de 2024

Por: Armando Lona

Author: O DEMOCRATA

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