Crónica do Centenário: “Os que sabem devem ensinar os que não sabem”, Amílcar Cabral

É uma das frases mais conhecidas de Amílcar Cabral. Mais do que uma palavra de ordem, uma voz de comando  aos camaradas, Cabral acreditava no poder da educação como porta aberta ao conhecimento e este último como chave de sucesso de todo o processo revolucionário à semelhança da luta de libertação nacional. 

A ligação entre teoria e prática era um pressuposto essencial para transformar a realidade concreta da luta e pós-luta, isto é, a construção da nação. Fiel a esse princípio, Cabral ensaiou as bases de um paradigma educacional novo, contrário ao sistema educativo colonial, restritivo e seletivo..

“Ensinar os que não sabem” tomou a forma de um imperativo no processo da condução da luta armada que não podia se limitar aos sentimentos, às emoções ou à magia.

Para Cabral, o conhecimento é um aliado da revolução e para isso, um vai e vem entre a teoria e prática se impunha. A este respeito, ele disse:

“Se é verdade que uma revolução pode falhar mesmo alimentada por teorias perfeitamente 

concebidas, ainda ninguém realizou uma revolução vitoriosa sem teoria revolucionária” (Cabral, 

1974a, p. 41). Esta posição clara vai marcar toda trajetória de Cabral e da própria luta de liberação. 

Ao dissertar sobre o que chamou de arma da teoria (que o Ilustre Mário Pinto de Andrade escolherá postumamente como título da obra base do pensamento de Cabral), o líder da revolução encarava o conhecimento como oxigénio que ninguém pudesse dispensar. Os quadros do partido, os comandantes, os comissários políticos, os jovens recrutas nas fileiras, todos tinham a obrigação de aprender, aprender continuamente!

Aprender para melhor entendimento dos instrumentos (as armas por exemplo) da luta em constante evolução. Nenhuma magia podia isentar o dever de aprender mais. A criação da Escola Piloto em Conacri, em dezembro de 1964 será seguida de várias iniciativas de criação de escolas nas zonas libertadas. O objectivo era o mesmo: democratizar o sistema educativo e  levar conhecimento à população. A formação de formadores permitia massificar o sistema, gradualmente.

Aquele que será apelidado de Pedagogo da Revolução por Paulo Freire,  Cabral sabia que tinha ideias, conhecimentos na cabeça mas não perdia oportunidade de testar esses conhecimentos, essas ideias no próprio processo da luta, em conversas, reuniões, discussões aturadas com jovens, na sua maioria sem mínima instrução escolar. 

Nos seus apontamentos, o pedagogo militante brasileiro Paulo Freire partilha a testemunha da sua companhia com Cabral por diferentes cantos:

“Amílcar conversava, avaliava o processo de luta, e em certo momento disse: “Eu preciso retirar duzentos de vocês da frente da luta, para mandar para outra frente de luta. Eu preciso de duzentos de vocês para mandar para Conacri, para Instituto de Capacitação, para capacitar os duzentos e depois trazê-los para o interior do país para as zonas libertadas, no sentido de trabalhar como professores”.

E aí o jovem olha para mim e diz, vejam como é um raciocínio assim muito imediato. Muito parecido 

com milhares de raciocínios nossos no Brasil e na América Latina. Disse: “Como é que eu, que estava 

com um fuzil na mão, vendo o meu companheiro cair morto junto de mim, os tugas matando a gente, como é que eu podia naquela hora pensar que pudesse haver a possibilidade de duzentos de nós saírem da frente de luta para ir estudar. Então a minha reação foi a seguinte: Mas, camarada Amílcar, esse negócio de educação fica para depois.”.

Era a versão prática de Cabral!  Entre teoria e prática está a educação e a formação. Se a luta de libertação tinha como um imperativo a promoção do conhecimento, como justificar a sua terceirização hoje?

Se a liderança da luta armada, sem meios suficientes, com escassos recursos humanos, tinha a consciência que investir na educação e nos conhecimentos era uma obrigação para o sucesso da luta e o lançamento das bases da futura República, como entender hoje o desprezo e a hostilidade para tudo que é conhecimento?

Como explicar o abandono, o esquecimento do apelo ao fim da ignorância dos povos através da frase”kilis ki sibi pa e sina kilis ki ka sibi”?

Bissau, 20 de setembro de 2024

Por: Armando Lona

Author: O DEMOCRATA

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *