Opinião: Amílcar Cabral, o homem mais valente e mais inteligente

“Que o teu filho viva amanhã no mundo dos teus seus sonhos” (Amílcar Cabral).

“Cabral dedicou-se intensamente à formação de um homem novo, com a esperança de que, quando deixasse a vida terrena, pudesse deixar boas recordações e saudades, em vez de voltar para cumprir o “programa maior” (Ismael Sadilú Sanhá).

Nas celebrações dos 100 anos de nascimento de Amílcar Cabral, entendi ser da mais elementar justiça abordar neste artigo, de forma resumida, o seu inestimável contributo para impulsionar a luta armada contra a colonização portuguesa.   

A imposição de um sistema severo e opressivo pelos colonizadores portugueses às suas colónias criou um forte ressentimento e repulsa nas populações oprimidas, despertando uma vívida consciência coletiva que clamava pela necessidade de mudar o estado das coisas. Na Guiné Portuguesa, resistências diversas foram conduzidas por diversos grupos étnicos, por diversas formas, antes do tipo de resistência encetadas no contexto da luta de libertação nacionais. 

Desde muito jovem, Cabral defendeu que os povos colonizados tinham direito à liberdade e ao controlo dos seus destinos, pois este é um direito intrínseco e inalienável de quem habita na sua própria terra (Ignátiev, 1975). Durante umas férias em Cabo Verde, enquanto ainda estudava em Lisboa, esta convicção foi sendo cada vez mais incrementada, quando se apercebeu da deterioração das condições de vida nas ilhas. O choque despertou nele um sentimento de indignação e inconformismo, e um sentido de missão alimentado pela esperança de que o que pudesse ser feito para devolver não só a dignidade ao povo do Cabo Verde, mas também para promover o progresso social e económico do País teria sérias hipóteses de sucesso. 

Apoiando-se num profundo conhecimento da realidade cabo-verdiana, com a qual tinha uma ligação profunda, Cabral desenvolveu de uma forma natural uma consciência critica face aos danos que a ocupação colonial causava em Cabo Verde. No entanto, o mesmo já não acontecia em relação às restantes colónias portuguesas, de que é exemplo a sua terra natal, a Guiné Portuguesa, de cuja realidade se encontrava completamente desligado, uma vez que saiu de lá aos nove anos de idade sem nunca mais tendo regressado.  

Não obstante, foi na Guiné Portuguesa que Cabral vislumbrou a oportunidade de tornar Cabo Verde livre e independente, percebendo que havia guineenses corajosos e determinados a sacrificar-se pelo bem comum dos povos da Guiné Portuguesa.  Antes da sua chegada a Bissau, já existiam muitos movimentos clandestinos que pretendiam combater o jugo colonial, entre os quais o Movimento da Independência Nacional da Guiné (MING), fundado por jovens intelectuais e operários, na sua maioria funcionários de Pessubé, ainda sem realizar ações concretas. Cabral começou a participar das reuniões desse movimento e, posteriormente, tornou-se membro de sua direção (Ignátiev, 1975). Fora a aderência ao MING, Cabral criou grupos em Pessubé, Cupelon e no Chão de Papel, bem como o Clube Desportivo Infantil, criando desta forma oportunidade para informar a população sobre a situação que o país atravessava e sensibilizá-la para importância da Luta pela independência.

Porque os movimentos nacionalistas da Guiné Portuguesa visavam apenas libertar o povo guineense, Amílcar Cabral estava claramente consciente da necessidade de formar uma frente única para travar a luta contra o colonialismo para incluir Cabo Verde no projeto da luta pela independência. Este era o seu grande objetivo, que só seria exequível se Cabral fundasse um partido que, sob a sua liderança, lutasse pela Luta pela Independência. Isso é o que demonstra a conversa com a sua esposa Helena em que esta lhe sugeriu que deixasse o MING, pois duvidava seriamente dos efeitos práticos da sua atividade. Em resposta, Cabral argumentou que havia pessoas inteligentes e valiosas no MING, que não deveriam ser subestimadas. Muitos dos membros do MING e os companheiros do grupo Pessubé, de Cupelon e do Chão de Papel poderiam formar o núcleo-duro da futura organização, contando Cabral com Aristides Pereira, Luís Cabral, Inácio Semedo e Vasco Cabral, para o apoiarem na criação do novo partido (Ignátiev, 1975). 

Portanto, a sua pretensão de fundar um partido que dirigiria não era aceite pelos nacionalistas, apesar de Cabral contar com o apoio de alguns.

Enquanto engenheiro agrónomo, Cabral viria a ter uma visão mais ampla da situação do País e, em particular, das diferenças sociais e económicas entre as tribos, quando foi responsável pela realização do recenseamento agrícola em todo o território nacional, concluindo que “(…) qualquer revolução, nacional ou social, que não tenha como base fundamental o conhecimento adequado dessa realidade, corre fortes riscos de insucesso, se não estiver votada ao fracasso (..)” (Comitini, 1980, p. 24). 

Com a experiência agora adquirida, estariam reunidas as condições que lhe permitiriam delinear uma estratégia de resistência ao colonialismo português, e tendo recebido autorização para passar um mês de férias por ano na Guiné Portuguesa, após ter sido proibido de permanecer, devido às denúncias feitas pelos próprios informadores guineenses da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) em relação à sua atividade política, Cabral e os seus companheiros, Luís Cabral, Fernando Fortes, Aristides Pereira, Júlio de Almeida e Elize Turpan, fundaram o Partido Africano da Independência e da União dos Povos da Guiné e de Cabo, que ficou conhecido como PAI, com o objetivo de liderar a Luta da Libertação Nacional. Procurava-se assim colmatar, como mencionado por Aristides Pereira (Ignátiev, 1975), a inoperância do MING: “O MING não tinha movimento nenhum, preocupava-se mais com a teorização, mas era preciso reforçar a teoria com ações concretas”. 

Foi assim que surgiu o primeiro partido clandestino na Guiné Portuguesa, que, na verdade, funcionava mais como um movimento, operando na clandestinidade, devido à repressão contra o movimento progressista e de propensões liberais na metrópole. Nesse contexto, a nova organização decidiu seguir o caminho da luta legal, considerando que, como defendia Cabral, seria absurdo, inútil e sem perspetiva incitar uma revolta contra a dominação colonial; o mais sensato seria dar continuidade às campanhas de esclarecimento junto dos estivadores, dos trabalhadores, sobre a luta do Partido pela melhoria das suas condições económicas (Ignátiev, 1975). Após a criação do Partido, Cabral regressou a Angola, onde trabalhava. 

Sem que Cabral soubesse, uma vez que se encontrava em Angola a trabalhar, os seus companheiros em Bissau decidiram dar maior visibilidade ao partido e ultrapassar a ambição de qualquer movimento que pretendesse liderar a luta. Esta iniciativa ganhou força quando Luís Cabral foi eleito presidente do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Indústria e do Comércio da Guiné Portuguesa, marcando um grande triunfo das forças nacionalistas de Bissau (Ignátiev, 1975). Motivaram os trabalhadores portuários a organizar uma manifestação em 3 de agosto de 1959, em Pindjiguiti, para reivindicarem direitos económicos. Esta manifestação foi brutalmente reprimida pelo exército português. Perante esta situação, uma nova abordagem ganhava urgência, para manter o ânimo na luta contra os colonialistas. Assim, Cabral chegou à conclusão de que o Partido deveria abandonar as manifestações urbanas e concentrar os seus esforços em atividades nas áreas rurais, que proporcionavam condições mais favoráveis para avançar rumo à luta armada pela independência. Para garantir a segurança da sua liderança e preparar a luta, o Partido decidiu estabelecer a sua sede em Conacri, uma vez que Conacri se estava a preparar para tomar a independência. 

Cabral queria que os movimentos nacionalistas da Guiné Portuguesa aderissem ao PAI e não o contrário. Por exemplo, em Conacri, alguns cidadãos da Guiné Portuguesa criaram um movimento liderado por Luís da Silva, mais conhecido como Tchalumbé, e Cabral foi convidado para ser o seu Presidente de Honra. Rejeitou-o categoricamente porque entendeu que a união do PAI com os grupos nacionalistas poderia levar à diluição do partido numa massa homogénea de pessoas com viés nacionalistas. Cabral destacou que, para combater o colonialismo, eram necessários recursos, mas, antes de tudo, deveria ser criado um instrumento de luta, e esseinstrumento era o Partido, que deveria criar condições para obter tudo o que era necessário. O partido representa as raízes e o tronco que produzem novos ramos para o progresso da causa independentista (Ignátiev, 1975). 

No meu entender, a resistência dos movimentos levouCabral a pensar que o PAI estava a ser discriminado, quiçá, pelo facto de a direção do PAI ser maioritariamente composta por pessoas que não eram “Puros Guineenses”, e fez a seguinte declaração: “Camaradas, aqui não há nem manjaco, nem papel, nem mandinga, nem balanta, nem fula, nem sussu, nem beafada, nem filho de cabo-verdiano. Aqui o que há é filho de um povo, Guiné e Cabo Verde, que querem servir. Servir o quê? O nosso partido. Quem servir o nosso partido é o nosso povo que está a servir. E quem quer racismo ou tribalismo pode juntar-se aos oportunistas, pode juntar-se aos grupelhos no Senegal ou em Conacri”. 

Instalou-se assim a disputa entre Tchalumbé e Cabral, pelo reconhecimento dos seus movimentos, mas foi o PAI que obteve o reconhecimento e o apoio das autoridades da República de Guiné-Conacri, já que Cabral gozava de considerável prestígio. Desta forma, Cabral, após uma investigação científica, concluiu que as raízes e origens de Cabo Verde e da parte continental da Guiné Portuguesa eram as mesmas, o que lhe permitiu fundamentar a sugestão que fez aos seus companheiros de que mudassem o nome do partido para Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Essa proposta foi aceite por todos (Ignátiev, 1975).

Cabral começou a preparar o povo para a luta armada. Comprou uma casa que passou a ser chamada de “LAR”, onde os jovens recrutados pelas células do Partido, enviados para Conacri, assim como muitos imigrantes da Guiné Portuguesa que fugiram ou emigraram por diversos motivos, recebiam um curso de formação geral ministrado por Cabral, que também dava aulas, aplicando um regime militar. Na mesma dinâmica, o PAIGC mandou ainda um grupo de jovens para a China com o objetivo de receber treino militar. Após terminarem a formação, esses jovens assumiram o comando de um pequeno destacamento do LAR. Entre eles, destacam-se Osvaldo Vieira, João Bernardo Vieira, Constantino Teixeira, Domingo Ramos, Rui de Anselmo, Francisco Mendes, Ilário Gaspar Rodrigues (Lolo), Vitorino da Costa, Victor Gomes e Manuel Saturnino (Ignátiev, 1975). 

Além disso, Amílcar Cabral lançou uma forte ofensiva diplomática para mobilizar os meios necessários para o início da luta armada, participando em várias conferências e fóruns. Revelou-se não só um bom engenheiro agrónomo, mas também um bom diplomata, ao conseguir apoios de várias organizações e países, e conquistando o respeito e a admiração incluindo de países fora do continente africano. 

Quando celebramos o centenário de Cabral num contexto de eternas crises diversas, importa recordar o sucesso dos projetos de luta de libertação que Cabral concebeu e dirigiu, e reconhecer a importância de ter uma liderança comprometida com a melhoria das condições de vida do seu povo, em toda a sua diversidade e transnacionalidade.

Cabral e seus camaradas comandaram uma luta que envolvia dois povos e o seu sucesso resultou da sua visão de sociedade unificadora, que procuraram implementar com um comando balizado por uma ambição altruísta e uma ligação umbilical como o povo que o viu nascer e com o qual se comprometeu incondicionalmente. 

Cabral corrigiu erros e repôs orientações, porque a trajetória da sua luta foi traçada com o foco na proclamação da independência (programa maior), e sobretudo porque sabia o maior e mais complexo desafio estava guardado para o pós-independência.

Por isso, Cabral se assumiu com tanto empenho como pedagogo, procurando formar homens novos capazes de rejeitar a desorganização, a falta de rumo e de compromisso, e de honrar e defender os interesses superiores da Nação.  

Esse foi o legado que Cabral e os seus camaradas quiseram deixar ao povo guineense. Cabral viria a ser assassinado, mas isso não comprometeu a luta pela libertação, bem montada que estava a máquina, que resistiu até à proclamação unilateral da independência em 24 de Setembro de 1973, nas Colinas de Boé, na pessoa de Nino Vieira, então Presidente da Assembleia Nacional Popular.

Depois da independência, infelizmente, os piores receios de Cabral viriam a verificar-se: o nacionalismo barato que Cabral temia; as divisões étnicas e civilizados versus não civilizados que sempre rejeitou e combateu; e a ambição pessoal sobrepuseram-se ao Programa Maior e tomaram conta da nossa terra, condenando o povo ao sofrimento e à pobreza.

Todos estes factos permitem conjeturar que, estivesse Cabral vivo, a influência que o seu carisma e a autoridade intelectual e moral que tinha sobre os intelectuais e combatentes pela Liberdade da Pátria, poderia ter conduzido a Guiné-Bissau, após a independência, num rumo diferente, no sentido de se ter tornado um país mais habilitado para trabalhar e lutar pela justiça e pela prosperidade económica e social para todos os guineenses.

Então, talvez seja tempo de refletirmos na realização de um outro Cassacá, para, coletivamente, retomarmos o rumo da luta preconizada pelo Programa Maior. Desta vez não será sob a bandeira do PAIGC. Será sob a bandeira da Guiné-Bissau, precioso legado pelo qual Cabral e tantos outros lutaram e morreram e que todos os guineenses têm obrigação de honrar. 

Por:  Ismael Sadilú Sanhá

Doutorando em Políticas Públicas pelo ISCTE

Fontes consultadas: 

1. Ignátiev, O. (1975). Amílcar Cabral, filho de África: narração bibliográfica. Prelo. 

2. Comitini, C. (1980). Amílcar Cabral – A armada dateoria. Sedegra S. A., Gráficos e Editores. Disponível em: https://afreekasite.files.wordpress.com/2018/03/a-arma-da-teoria-amilcar-cabral.pdf

Author: O DEMOCRATA

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