Crónica do Centenário: Cabral, o maior estrategista?

Agrónomo, intelectual, líder político, revolucionário, Amílcar Cabral se distinguia pela sua dimensão estratégica. A estratégia está no centro da vida e obra deste homem multifacetado. Foi um estratego nato! Tudo o que fazia, o olhar estratégico estava presente.

Quando coordenava recenseamentos  agrícolas da população da Guiné, o seu interesse nesses trabalhos era mais profundo do que se pretendia pela administração colonial. Estrategicamente, Cabral tentava perceber o sistema produtivo, a organização social de cada grupo étnico, o sentimento profundo de cada etnia, motivações e percepções em relação à realidade colonial.

No Interior de cada grupo, quem eram os que queriam realmente a mudança do sistema e quem tinha interesse na manutenção do status quo e quais eram os benefícios? Quem eram os aliados? Cabral procurava perceber e responder a estas questões para estrategicamente poder determinar o nível de engajamento de cada parte num eventual processo de luta.

Com capote de político, Cabral vai utilizar esse conhecimento científico para estrategicamente mobilizar e federar a grande maioria dos grupos étnicos para luta de libertação nacional. Um desafio gigantesco num território com tradição de confrontos étnicos que só um estratego com estatura de Cabral podia vencer.

Cabral era alérgico ao improviso, razão pela navegava constantemente entre a teoria e a prática. Produzir reflexões teóricas e testá-las na prática! No campo militar, é onde mais demonstrou a sua habilidade estratégica. Tinha vários capotes: político, comandante, diplomata. Em função da situação presente, o homem sabia trocar do capote. Quando a situação no terreno militar indiciava para dificuldades e perdas, Cabral avançava em frente política, por exemplo o anúncio de libertação de prisioneiros portugueses em nome do humanismo e da paz. 

E fazia o mesmo no campo diplomático, visita a um país aliado importante onde não perdia o oportunidade de dar entrevistas e aparecer nos manchetes dos prestigiados jornais das grandes praças do Ocidente e do leste.

A luta de libertação decorreu em plena guerra fria que dividia o mundo em dois grandes blocos: O Ocidente e a URSS. Embora tido como um amigo e aliado em primeira mão do bloco soviético, Amílcar Cabral não sucumbiu ao condicionalismo, às imposições dos aliados do leste. Eram estratégicos no processo da luta, mas não eram os donos do processo. O dono do processo é o povo da Guiné e Cabo Verde. Era necessário ter a visão e a coragem para dizer NÃO à interpelações tais como: “amigo do nosso inimigo é nosso inimigo”, “Se és o nosso amigo, nosso inimigo é teu inimigo”. Cabral não cedeu e nunca deixou ser peão de nenhum dos blocos em competição 

Fez o mesmo com o Ocidente que com o avançar da luta, começara a arranjar a forma de o controlar. Enquanto visionário e estratego, Cabral sabia arrastar o debate para o essencial que era o descalabro que o colonialismo representava para os povos em luta bem como para o mundo que não podia mais admitir no seu meio caras de colonialismo e fascismo.

Aceitação ou não de apoios de um dos blocos, era examinado com autonomia pela liderança da luta. Essa autonomia estendia-se igualmente ao campo ideológico. Embora consciente da influência das ideologias da esquerda na Europa, Cabral nunca deixou ser consumido pela encomenda, pouco menos aceitou fazer o papel de representantes dessas ideologias em África. Lembra-se da sua frase/ resposta à pergunta do jornalista, se ele e o PAIGC eram marxistas, “Nós somos militantes armados”, respondeu com elegância.

Outra intervenção marcante de Cabral foi na conferência de imprensa em Roma, em julho de 1970, à margem da Conferência de Solidariedade para com os Povos das Colónias Portuguesas de África, depois da audiência no Vaticano com o Papa Paulo VI.. Na ocasião, Cabral, ladeado de Marcelino dos Santos e Agostinho Nero, disse claramente que estava aberto em receber os apoios em armamento da Itália, uma das fornecedoras de armas ao regime fascista de  Portugal para matar as populações africanas!

Autonomia ideológica, autonomia estratégica foram possíveis graças à forte preparação teórica associada à forte capacidade de liderança política pragmática de Cabral. 

Bissau, 22 de setembro de 2024

Por: Armando Lona 

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Author: O DEMOCRATA

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