Analista Político:  “PRORROGAR O MANDATO DO PR POLITICAMENTE PODE CRIAR MAIS CRISE E INCENDIAR O AMBIENTE POLÍTICO”

O especialista em relações internacionais e analista político, Santos Nuno Mustas, alertou que, do ponto de vista jurídico, não será “ilegal” prorrogar o mandato do Presidente da República, mas politicamente poderá despoletar mais a crise política e “incendiar” o discurso político e social, que poderá traduzir-se numa crispação sem precedentes, com fortes probabilidades de minar todas as legítimas expectativas do povo de viver em paz e em segurança. 

Em entrevista ao Jornal O Democrata para a analisar o enquadramento político e jurídico de prorrogação ou não do mando do Presidente da República, Santos Nuno Mustas descreveu o debate nas redes sociais à volta da carta da Plataforma Aliança Inclusiva PAI-Terra Ranka como “deveras preocupante”, porque a radiografia que hoje se faz da Guiné-Bissau – é de um país desgovernado, sequestrado por um grupo de classe política despreparado, mergulhado numa corrupção patológica, no nepotismo e no tráfico de influências”, entre outras condutas que têm minado o sonho do “martirizado povo guineense, particularmente dos jovens que clamam por um país de oportunidades e de realizações”. 

PRORROGAÇÃO DO MANDATO DO PR PODERIA TER OCORRIDO SE O PARLAMENTO ESTIVESSE A FUNCIONAR  

“Não podemos falar da prorrogação do mandato do Presidente da República, uma vez que a 11ª legislatura foi interrompida inconstitucionalmente e sem fundamentos plausíveis. Poderíamos estar a falar da prorrogação do mandato do Presidente da República em outras circunstâncias, se Assembleia Nacional Popular estivesse a funcionar na sua plenitude, com deputados em efetividade das funções”, indicou.

Lembrou, neste particular, que a ANP é o Supremo órgão legislativo e de fiscalização política representativo de todos os cidadãos guineenses e decide sobre as questões fundamentais da política interna e externa do Estado e compete-lhe ainda pronunciar-se, conforme determinado pela Constituição da República, sobre a prorrogação do mandato do Presidente da República.

“Se tudo isso tivesse sido respeitado, o assunto teria sido também objeto de análise, de debate político pelos deputados. Ou poderia ter ocorrido nas circunstâncias em que foi declarado um estado de sítio e de emergência. Mas no caso do atual Presidente da República, o seu mandato terminará no dia 27 de fevereiro do próximo ano”, frisou.

Perante estes fatos, Santos Mustas afirmou que o chefe de Estado perdeu grandes oportunidades de usar as suas prerrogativas constitucionais para se proporcionar um ambiente político pacífico, por estar a partir de agora no seu período de gestão de mandato, como chefe de Estado, razão pela qual deveria evitar praticar quaisquer atos.

“O país caminha para a vacatura na chefia do Estado, uma vez que não haverá eleições presidenciais, devido à intenção política do Presidente da República em não marcar a data das presidenciais. Repito, não podemos falar da prorrogação do mandato, numa altura em foi posta em causa a ordem constitucional e democrática, decorrente das eleições legislativas de 4 junho de 2023”, insistiu.

Solicitado a esclarecer se existem precedentes históricos no país sobre a prorrogação de mandatos do Presidente da República e quais foram os desfechos legais, explicou que em três décadas da história da democracia guineense, a Guiné-Bissau já realizou 14 eleições legislativas e presidenciais, com exceção de 12 de abril que foram inconclusivas, mas nenhuma legislatura chegou ao fim, contudo lembrou que “até ao momento, felizmente apenas um presidente concluiu o seu mandato [o José Mário Vaz] e nunca houve um cenário político de género”. 

“Ou seja, nunca, no nosso país, a Constituição e leis da República, os Direitos, Liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, dos deputados, dos políticos, a independência dos tribunais, o progresso e o bem-estar do nosso povo, desde a abertura democrática, foram postos em causa como está a acontecer hoje em dia. Deixaram de haver limites e balizas ao exercício do poder político.  O Estado da Guiné-Bissau ruiu, por completo, por via da destruição dos pilares da sua sustentação.  O poder político está concentrado num único órgão”, criticou. 

O especialista em ciências políticas admitiu  que a  prorrogação do mandato será difícil do ponto de vista político, mas é possível que o Presidente da República revogue o seu “decreto ilegal” e “inconstitucional”, sustentando que o Presidente da República deveria pautar-se pelo respeito escrupuloso da Constituição da República, perante a crise política e fazer a reposição da ordem constitucional, quebrada em finais de 2023, e proceder à reabertura imediata da ANP, para garantir o seu funcionamento total, conforme determinado pela Constituição da República e o Regimento do Parlamento. 

Disse acreditar que em decorrência deste “estado deplorável de coisas”, o país não vai realizar as eleições presidenciais e legislativas num período considerado normal. Mas com a reabertura da ANP, criar-se-ia as condições necessárias para proceder à recomposição do Órgão Executivo da Comissão Nacional de Eleições (CNE) para legitimação do mesmo. 

“Como se sabe, a CNE é o órgão superior da administração eleitoral com competências para disciplinar e fiscalizar, neste âmbito, todos os atos e operações eleitorais para os órgãos eletivos de soberania (Presidência da República e Assembleia Nacional Popular) e isso convida todos os atores políticos, partidos políticos, as coligações eleitorais a respeitar à Constituição da República e evitar que provoquem ou incentivem a população ao ódio ou à violação”, defendeu. 

“O PAÍS NÃO PODE ESPERAR MUITA COISA DE UM SETOR DE JUSTIÇA DESATIVADO E CONTROLADO”

Santos Nuno Mustas disse que o país não pode, de hoje em diante, esperar muita coisa  do setor da Justiça, porque o que se tem assistido na Guiné-Bissau “é extremamente preocupante”, visto que as instituições da Justiça, incluindo os Tribunais, nomeadamente  o Supremo Tribunal de Justiça e a  Procuradoria-Geral da República, estão desativados, controladas, baralhadas, fragilizadas, inoperantes e em convulsão interna, fruto de “intromissões sistemáticas do atual poder político”, nas questões de natureza essencialmente jurídica.

Apontou como um dos maiores problemas ao funcionamento da justiça e do Estado guineense, a corrupção, a impunidade, o envolvimento de altas autoridades no tráfico de drogas, perseguições e intimidações políticas entre outros que têm afetado o país.

“Perante essas fragilidades, a esperança última dos cidadãos deposita-se essencialmente na justiça. É a ela que cabe o árduo papel de garantir os direitos e os deveres dos cidadãos na sua vida quotidiana. Infelizmente o atual Supremo Tribunal de Justiça não tem dignidade constitucional e não administra justiça em nome do povo”, afirmou. 

Defendeu que é urgente repensar a forma de os partidos se apresentarem na sociedade política mais do que necessário e a condição “sine quanon” para se poder garantir seguramente o normal funcionamento entre instituições democráticas e salvar a “falência” de visão política anunciada de todo um sistema que está a conhecer sinais preocupantes e que terá rapidamente de se redefinir, inevitavelmente, sob pena de ser ultrapassado pela dimensão e escala dos acontecimentos políticos (crise política) no país.

O analista político assinalou que nos últimos anos, o regime político, o sistema político e democrático, o quadro constitucional e instituições basilares do país vêm sendo postas à prova, de forma inédita e desafiante.  Nas diferentes áreas, desde financeira, económica, à política e à estatal, constata-se que há setores que estão hoje ainda muito debilitados, como é o caso da Educação e Saúde.

“Por isso, considero que este é o momento de a política e os cidadãos se afirmarem em nome de um futuro que todos queremos melhorar para a Guiné-Bissau. Chegou a hora de cada um de nós se interrogar, em consciência plena, e de todos percebermos a indiferença pela realidade quotidiana como pessoas e como cidadãos. Chegou a hora de agir, de perguntarmo-nos em que medida podemos melhorar e contribuir para o bem comum, para que possamos orientar as nossas atuações no presente, sempre de olhos postos no futuro. Se assim não for, serão as gerações seguintes a sofrerem as consequências dos erros que hoje estão a ser cometidos. Porque se estes pressupostos não forem respeitados agora, já vão o seu futuro, a sua liberdade e o progresso fortemente comprometidos”, convidou. 

Finalmente, reconheceu que chegou a hora da responsabilidade, de todos cumprirem o seu dever de cidadania, porque “um cidadão informado é sempre um cidadão que age e que decide melhor, alertado para os grandes problemas contemporâneos, para a necessidade do exercício da crítica consciente, apto a exercer a sua liberdade com a responsabilidade cívica”.

 Por: Filomeno Sambú

Author: O DEMOCRATA

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *