Opinião: Peregrinação à Meca sob Mercê dos Políticos

A comunidade islâmica da Guiné-Bissau, sempre recebeu o auxílio do aparelho de estado nos preparativos para a realização da peregrinação à Meca. Desde o período colonial, precisamente na segunda fase de relacionamento com o poder colonial, algumas elites de grupos étnicos islamizados receberam a assistência para a realização de peregrinação à cidade santa de Meca.  Depois da independência, apesar do esforço das novas autoridades em subtrair às entidades religiosas o papel social capital de que dispunham, a comunidade sempre beneficiou de cunho para a efetivação do cumprimento dessa prática religiosa. A questão que não se deixa calar é, e se o Estado, um dia, abdicar de dar essa assistência a comunidade islâmica, o que será dos muçulmanos face ao cumprimento do quinto pilar do islão?

Apesar de o estado ainda não der ouvidos, há vozes críticas em relação ao que consideram ser parcialidade do estado em relação às outras confissões religiosas, críticas essas mereceram a reflexão de alguns intelectuais. Num artigo publicado em 2001, Fafali Koudawo escreveu que as organizações islâmicas mantêm a cumplicidade profunda com a classe política, e como tal recebem prebendas e assistência nos preparativos para a peregrinação a Meca. Como se não bastasse, Carlos Cardoso, foi mais longe, e considerou que a ação do Presidente Dr. Kumba Yalá em envolver diretamente nos preparativos a santa cidade de Meca, tendo enviado um número considerável dos muçulmanos, é uma flagrante violação do princípio de laicidade do estado. Para esse autor, o estado nunca patrocinou qualquer peregrinação a Fátima ou a qualquer outro local tido por importantes pelos praticantes de outras religiões.

Apesar dessas vozes e outras que criticam ora em voz alta, ora em voz baixa, a comunidade islâmica ainda depende consideravelmente de assistência do aparelho de estado para realização de peregrinação. A criação de Alto Comissariado para a Peregrinação aos lugares santos de Meca, veio a reforçar a determinação do estado em prosseguir com a sua assistência. No entanto, suponhamos que, o Estado, um dia, abdicar de dar essa assistência a comunidade islâmica, o que será dos muçulmanos face ao cumprimento de quinto pilar do islão?

Em junho de 2022, o Presidente da República, Umaro Sissoco Embaló, anunciou a extinção do Alto Comissariado para a Peregrinação, enfatizando que a Guiné-Bissau é um país laico e que a organização da peregrinação deveria ser responsabilidade das agências de viagens.  No entanto, o Alto Comissariado foi restabelecido, e por coincidência ou não, o atual Alto Comissário, é igualmente o chefe de gabinete do Presidente da República, fato que pode levar a qualquer indivíduo sensato a chegar pelo menos a duas conclusões, que não são distintas uma da outra.

Primeiro é que, a elite política nacional aproveita da fragilidade estrutural da comunidade islâmica, e lança a isca, podendo sempre contar com o “eterno retorno no plebiscito” e com efeito manter sempre que possível a comunidade de refém das suas vontades, que pela ação pratica contradiz todo o princípio islâmico. O segundo é que, a comunidade islâmica deixou-se que nem ave “na mom di mininos” incapaz de resistir a qualquer tipo de instrumentalização. Essa postura irresistível é o resultado da fragmentação profunda da comunidade islâmica motivada pela sua desestruturação hierárquica.

É preciso, porém, que a comunidade esteja em alerta máximo e equacione todas as possibilidades possíveis que podem diminuir, um dia, a ação do aparelho de estado, ou até o afastamento total do aparelho de estado dos preparativos à Meca. E, se isso acontecer, o que será dos muçulmanos face ao cumprimento de peregrinação?

Atualmente, em função do sabor amargo que a comunidade sente em relação a intervenção do estado, ninguém se questiona se um dia, o estado pretende contornar essa situação e restabelecer o equilíbrio no tratamento das confissões religiosas. Porque, se o Alto Comissariado já foi suspenso, por um Presidente muçulmano, e que, pelas suas palavras sustenta essa atitude com base na laicidade do estado, o que será se um dia, qualquer presidente vier a seguir a mesma postura e alegar a mesma laicidade do estado?

Temos vindo a alertar através de formações, palestras e programas radiofónicos, sobre a necessidade de a comunidade islâmica possuir uma estrutura capaz de responder sobre a situação dos muçulmanos e que será o elo dos muçulmanos com as outras entidades, sem que haja uma mistura inadequada e injustificável. Sabe-se, contudo, que o islão não condena a política nem ao seu exercício, porém, qualquer líder religioso que apraz submeter-se à vontade política, perde a essência da defesa dos valores e princípios.

As entidades políticas são distintas das entidades religiosas. Pode haver colaboração, mas não a submissão voluntária, pelo que as suas atividades devem ser distintas uma da outra. O lançamento oficial de Haj (peregrinação) feito no dia 10 de fevereiro, contou com a presença de várias personalidades, entre os quais líderes religiosos, empresários, políticos e afins. O ato foi presidido pelo Alto Comissário, que é igualmente o chefe de Gabinete do Presidente da República. Certamente que não é por coincidência, mas sim por uma ação deliberada. A sala estava repleta de jovens muçulmanos com alta formação académica e islâmica, podiam as autoridades deixar que a comunidade indicasse alguém para a função. Porém, sendo a nomeação proveniente das autoridades, pode-se esperar sempre um troco adicional.

É necessário que a comunidade islâmica assuma a sua responsabilidade e organize internamente de modo a livrar-se dessa submissão voluntária em relação ao poder político. Enquanto a comunidade islâmica se mostrar incapaz de trabalhar sem o auxílio das autoridades nacionais, será sempre objeto de uso por essas.

É preciso que as valências islâmicas sejam reconhecidas e atribuídas responsabilidades de liderar os trabalhos da comunidade. Não deixa de ser ridículo a frequente presença das autoridades políticas nos eventos que por inerência são exclusivos dos muçulmanos. Os líderes muçulmanos precisam lembrar que representam a maior comunidade religiosa no país, e as suas presenças simbolizam a vontade dos muçulmanos, ainda que não seja. É fundamental a preservação das imagens e a conservação dos princípios fundamentais do islão. Nenhuma ajuda é válida se for seguida por injúria ou por cobranças, pelo que a postura dos líderes muçulmanos deve circunscrever-se apenas ao respeito pelos ensinamentos islâmicos, não de qualquer pretensão de submissão.

Enquanto a comunidade não se livrar de constituir de objeto de uso pelas autoridades nacionais, nunca será capaz de demonstrar a sua capacidade de organização e de conquistas. As conquistas islâmicas podem ocasionalmente ser apreciadas pelas autoridades, mas nunca depender delas. As agências de peregrinação precisam demonstrar as suas capacidades organizacionais, não se limitar em servir de clientelas com a ética religiosa, mas o espírito capitalista. É urgente uma reforma espiritual que conduziria a algumas personalidades para prática efetiva do islão. Isto é, o islão prático  não apenas teórico, ou seja, não obstante, pregar constantemente a doutrina se as suas ações não correspondem com as palavras. 

Que Allah Aceite de Mim esse pequeno esforço

Bissau; fevereiro de 2025

Por: Alberto Carfa Jaura

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