
Em finais do mês de fevereiro de 2025, no momento em que se assinalava os três (3) anos da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, o mundo assistiu “incrédulo”, e muito provavelmente, aquilo que outrora estava “restrito” apenas aos bastidores do poder, pelo menos, na perspectiva do ocidente, o comportamento revelado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump versus Volodymir Zelensky – num (debate nu, cru e direto), em relação ao eventual acordo, que pudesse permitir o “fim da guerra”, mediante algumas cedências de, entre outros recursos ucranianos – as terras raras ucranianas.
Nada de novo! Se se tomarmos em conta que todas as guerras, até as mais recentes, são movidas por interesses económicos, ou talvez, políticos.
Revisitando o Prémio Nobel da Paz – Henry Kissinger – que passo a citar: “nas décadas subsequentes à Segunda Guerra Mundial, parecia estar prestes a emergir uma ideia da comunidade mundial. As regiões mais avançadas estavam consumidas pela guerra, as regiões subdesenvolvidas iniciavam os seus processos de descolonização e redefinição de identidade. Todos sentiam mais necessidade de cooperação do que de confrontos. Porém, os Estados Unidos, poupados às devastações da guerra – aliás, fortaleceram o conflito a sua afirmação económica e nacional. Como nação fundada no ideal proclamado de governação livre e representativa, identificaram a sua ascensão com a propagação da liberdade e da democracia, e atribuíram a essas forças a capacidade de alcançar a paz justa e duradoura que então frustrara o mundo. A abordagem europeia tradicional via nos povos e nos Estados entidades fundamentalmente concorrenciais e, para travar os efeitos de choques de ambições, optara pelo equilíbrio do poder e pela concertação dos estadistas esclarecidos”.
Essa mesma doutrina, prevalecente nos Estados Unidos, considerava as pessoas intrinsecamente racionais e predispostas ao compromisso pacífico, ao bom senso, e à negociação equitativa, a propagação da democracia era, portanto, o meio último para a ordem internacional. Os mercados livres moralizariam os indivíduos, enriqueceriam as sociedades e fariam uso da interdependência económica em vez das tradicionais rivalidades internacionais.
A expansão da democracia e da governação representativa tornou-se aspiração comum, senão realidade global; comunicação global e as redes financeiras operam em tempo real, tornando possível um grau de interações humanas que era inimaginável em gerações anteriores.
No entretanto, no mundo da geopolítica, a ordem que o Ocidente implementou e declarou universal encontra-se numa encruzilhada. As suas panaceias gozam de compreensão geral, mas não existe consenso sobre a sua aplicação, aliás são tão diversas as interpretações de conceitos como democracia, direitos humanos e direito internacional, que é frequente as partes beligerantes fazerem deles os seus gritos de guerra. As regras do sistema foram promulgadas, mas, na falta de força sancionatória, revelaram-se ineficazes.
Vivemos um quarto do século de crises políticas e económicas cujas causas são atribuídas, ou pelo menos, relacionadas ao receituário e às práticas ocidentais – juntamente com a impulsão de ordens regionais, os banhos de sangue sectários, o terrorismo, e as guerras que terminam sem vitória –, voltou a pôr em questão os postulados otimistas da época posterior à Guerra Fria, segundo os quais a (expansão da democracia e da economia do mercado resultariam automaticamente num mundo justo, pacífico e inclusivo).
No nosso tempo, o poder está em fluxo constante, na medida em que a cada década que passa, reivindicações diversas de legitimidade sobem de tom e atingem dimensões antes inconcebíveis. Numa época em que as armas ganharam capacidade para destruir a civilização e as interações entre sistema de valores são instantâneas.
Uns meses passados, os média pró-ocidente vendiam a “falsa” ilusão em como a Ucrânia ganharia a guerra (via armada) e que os valores tradicionais europeus tinham que ser defendidos a todo custo. E de repente, contudo, o “pragmatismo” do presidente pôs a prova a fraca capacidade da União Europeia para evitar aquilo que todos atentamente previam, negociar o fim da guerra, antes que seja tarde demais.
E agora, o que se segue?
Kissinger propõe, digamos assim, que a reconstrução do sistema internacional é um “derradeiro desafio da diplomacia do nosso tempo. Pois ele acredita que o castigo de um insucesso não será apenas uma grande guerra entre Estados, mas também uma evolução para as esferas de influência identificadas com estruturas internas particulares e formas de governação” – por exemplo, o modelo proposto recentemente à Ucrânia pelo presidente Trump versus o modelo proposto pela União Europeia é demonstrativo das esferas antagônicas do poder. Nos seus extremos, cada esfera seria tentada a experimentar a sua força contra outros modelos de ordem considerados ilegítimos.
Portanto, Kissinger defende uma ordem mundial que afirme a dignidade individual e a governação representativa e que promova a cooperação internacional segundo normas preestabelecidas pode ser a nova esperança e deve ser a nova ambição. Mas o caminho para ela exige se seja persistente ao percorrer várias etapas intermédias.
A ordem mundial, do inglês – “World Order” – do ocidente não voltará, e aconselha os norte-americanos, que a “celebração dos princípios universais deve ser articulada com o reconhecimento da realidade, das histórias, das culturas, das visões e da segurança das outras regiões”.
Exporta-se a democracia? Ele diz não.
A ordem mundial do ocidente não voltará a mesma, “está em crise o conceito subjacente à era geopolítica moderna. (…) A procura da ordem do mundo foi durante longo tempo quase exclusivamente definida por conceitos das sociedades ocidentais”. É isto que acabou.
Bissau, março de 2025
Por : Santos Fernandes
Referência:
A Ordem Mundial Reflexões sobre o Carácter das Nações e o Curso da História – Henry Kissinger, 2014.