Opinião: IMIGRANTES ILEGAIS É O QUE A EUROPA FAZ DELES

A legitimidade é sempre essencial na tomada de medidas relacionadas a assuntos de grande interesse público nacional e/ou internacional, especialmente os mais complexos e sensíveis. Desta feita, os atores políticos, mormente os Estados, para minorar seus custos políticos na abordagem de matérias complexas, buscam de alguma maneira a legitimação popular, tentando evitar eventuais críticas e desgastes políticos. Quando se deparam com cenários repletos de armadilhas que dificultam legitimar suas ações políticas, os Estados e/ou governos podem (tendem a) manipular e deturpar os cenários, atribuindo-lhes novos significados a partir de reconstrução conceitual do objeto em causa e seus elementos constituintes. Feito isso, em conformidade com o significado que pretendem reinventar, o conceito/cenário por eles fabricado (atribuído novo significado), passa a ser conhecido e aceite (trabalham para que seja aceite) como tal pela opinião pública nacional e internacional através de publicidade.

O conteúdo do princípio exposto no parágrafo precedente foi a que reinventou o significado e a natureza da crise humanitária que se vive no mar Mediterrâneo. A União Europeia (UE), “ameaçada pela invasão humanitária” oriunda da África e do Oriente Médio, em nome dos interesses nacionais e regionais de natureza econômica, cultural, ideológica e política – elevados acima dos preceitos humanitários universais que a própria civilização ocidental prega – busca legitimar, sobretudo perante a comunidade internacional, a negação criminosa de cruzamento de suas fronteiras marítimas pelos refugiados internacionais. Para se justificar e tentar se inocentar do crime humanitário que o mundo assiste quotidianamente como se nada estivesse acontecendo, as autoridades europeias lançam mão de interpretação estereotipada da crise dos refugiados no mar Mediterrâneo, atribuindo-lhe outro significado: crise de imigrantes ilegais. (Todo o texto utiliza a palavra IMIGRANTES em referência àqueles que entram).

A incoerência desta inventada categorização europeia (imigração ilegal) para esse cenário do Mediterrâneo, a qual tem sido amplamente difundida pela grande mídia, se revela a partir de análise dos reais fatores motivadores de arriscada travessia desse mar pelos indivíduos. Realmente, as pessoas já cruzavam clandestinamente o Mediterrâneo, especialmente pela rota Líbia-Itália (dura no máximo dois dias dada a sua proximidade), no entanto, esse evento multiplicou nos últimos anos. É praticamente de consenso universal de que esse cenário é determinado fundamentalmente pelas guerras, violências e instabilidades sócio-políticas regionais e locais.

As crises políticas e humanitárias na Líbia (resultantes da invasão militar da OTAN, em 2011) e na Síria, mas também, em alguma medida, as clivagens e tensões sócio-políticas e militares no Egito, Tunísia, Iêmen – decorrentes da Primavera Árabe – somadas às ondas de terrorismo político-religioso na Nigéria e instabilidade sócio-política no “Chifre da África”, explicam a recorrente multiplicação de número de indivíduos que buscam refúgio na Europa. Sim, buscam refúgio. O próprio Alto Comissário da ONU para os Refugiados (ACNUR), outrora Primeiro-Ministro português, António Guterres, contradiz o slogan imigrantes ilegais. Ele disse: “enquanto a Europa discute a melhor maneira de enfrentar a crise no Mediterrâneo, devemos ser claros: a maioria das pessoas que chega por mar à Europa é refugiada que busca proteção”.

Os termos imigrantes ilegais não encontram um enquadramento razoável e congruente em relação à realidade substantiva da situação em análise. Os ditos “imigrantes ilegais” são refugiados (na sua maioria), pois são obrigados a deixar involuntariamente seus países de origem por tensões de ordem sócio-política e militar. O fato é que o uso do termo refugiado – embora seja o correto – seria um elemento complicador de legitimação de repreensão e retorno obrigatório (em alguns casos) dos refugiados oriundos do além-mar. Por isso, a União Europeia usa e difunde a expressão imigrantes ilegais para fazer referência a esses refugiados e legitimar o seu não acolhimento.

Até 2014, a Itália efetuava, de forma unilateral, a operação Mare Nostrum (“nosso mar”). Quer dizer, fazia, de forma proativa, buscas permanentes no mar e resgatava as embarcações. Porém, após pressão das autoridades europeias, que argumentavam que a operação estava encorajando a vinda de “imigrantes”, a Frontex (Agência de Fronteiras da União Europeia), assumiu a operação, que passou a se chamar Triton – uma operação que não objetiva fazer buscas no mar, apenas realiza vigilância e patrulhamento sobre o Mediterrâneo. Além disso, se beneficia apenas de um terço do orçamento que a Mare Nostrum tinha.

É verdade que nesse meio há imigrantes, mas a maioria enquadra-se na categoria normativa e conceitual do termo refugiado. António Guterres foi muito preciso: “a Europa tem uma clara responsabilidade de ajudar aos que buscam proteção de conflitos e perseguição. Negar essa responsabilidade é ameaçar os pilares do sistema humanitário da Europa”. A questão é que a Europa foge de responsabilidade de conceder refúgio e para isso criou categorias para legitimar sua negação de proteger. Os motivos variam desde cultural, ideológico, econômico e político.

Se o elevado índice de desemprego na Europa – fruto da profunda crise econômica – fomenta a resignação popular e política dos estrangeiros, esse quadro se agrava ainda mais com a recorrente onda de ameaça e prática de terrorismo nos decênios mais recentes e nos últimos anos. É ainda muito vivo o recente episódio terrorista ao renomado jornal satírico francês, Charlie Hebdo, sediado em Paris. Os governos europeus e sua população, cada vez mais propensos ao conservadorismo, estão inquietados com a crescente miscigenação do seu povo e permeabilidade dos valores e culturas de matriz árabo-islâmica no contexto cultural e civilizacional da Europa. A influência cultural-ideológica de viés radical islâmico se evidencia com a gradativa aderência de cidadãos/jovens europeus às fileiras e aos centros de treinamentos terroristas no Oriente Médio e África.

Todo esse cenário fortalece o revigoramento do conservadorismo europeu e ocidental. Um exemplo oportuno é a estrondosa vitória eleitoral (com maioria absoluta), este ano, do partido conservador britânico liderado pelo David Cameron, que era dada como incerta pelas pesquisas eleitorais. Dizem especialistas que essa vitória só se concretizou devido à adoção ou retomada de um veemente discurso político anti-imigração. Ou seja, discurso provido de matizes xenofóbicos. Portanto, os partidos de direita vêm nesse quadro ingredientes significativos para crescerem politica e eleitoralmente e os de esquerda tendem a mover-se um pouco para o centro, e os centristas um pouco para a direita.

Dito isso, me parece que a preocupação primordial da UE não é de proteger e evitar perda de vidas no Mediterrâneo (embora possa ser uma de suas preocupações), ela se direciona mais às tentativas de guarnecimento de sua integridade territorial e segurança regional. Devido às “ameaças” de mais variadas naturezas (cultural, ideológica, econômica, política) como já fiz menção, não foi muito difícil a União Europeia criar e vender slogan “imigrantes ilegais” no lugar de refugiados. E ao que se constata, o slogan foi bem acolhido e reproduzido pela grande mídia e apoiado (legitimado) pela população europeia.

Portanto, por ser uma crise de natureza humanitária, penso que a construção de soluções equilibradas e razoáveis que a resolvam pela raiz ou minoram significativamente a perda de vidas no mar Mediterrâneo, deveria ocorrer a partir de perspectivas político-humanitárias e não de cálculos exclusivamente político-econômicos, culturais e ideológicos. O primeiro reparo seria nos termos utilizados. Refugiados ao invés de imigrantes ilegais.

 

Timóteo Saba M’bunde é Mestre em Ciência Política.

 

As declarações de Alto Comissário da ONU para os Refugiados, António Guterres: http://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/brasil/2015/07/01/numero-de-imigrantes-que-cruzam-mediterraneo-cresce-83-em-6-meses.htm

 

2 thoughts on “Opinião: IMIGRANTES ILEGAIS É O QUE A EUROPA FAZ DELES

  1. Parabéns, meu caro Timóteo, como sempre nos brindando com suas análises brilhantes, desta vez, “A crise humanitária no Mar Mediterrâneo”. Infelizmente, a Europa, não obstante o legado proporcionado a humanidade, na arte, na ciência e na cultura, através do pensamento racional, sempre viveu no poço das contradições. Ao mesmo tempo que a Europa propagava e vivenciava a época das luzes, das revoluções, o grito da Liberdade, da igualdade e da fraternidade, foi a época que se matava, pilhava e sequestrava os povos dos outros continentes.
    O que se vive hoje no Mar Mediterrâneo, é mais um outro absurdo das contradições históricas da Europa para com os países do Sul do Globo.
    Estes acontecimentos deveriam também servir de exemplo para os lideres dos países do Sul, em especial os africanos, a fim de assumirem um compromisso mais sério para criar condições dignas que possam reduzir as mazelas que obrigam seus cidadãos a arriscarem suas vidas em busca de um sonho no velho continente.

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